quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Ela pintava o deserto em tons pastel



Do alto da estrada eu vejo um mar neon
No meio do nada, estrelas no chão

Do alto da estrada o frio é tão bom
E no meio do nada dos seus lábios, o som

Que indica que a vida se encerra
Semifusa em um semitom

A solidão que só entende a multidão

A solidão de um grão de areia

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Escaleno



                O mesmo bar simpático, com o mesmo quadro barato, com aquele mesmo garçom estabanado, com os mesmos drinques aguados, com a mesma guria de sempre que olhava sempre com olhos diferentes.
                Era pequena, a pele morena, a boca pequena, bem talhada com um batom rosa claro, delineando seu sorriso extenso. Seus olhos negros, mas como de um gato – grandes, cílios grandes, ovais e expressivos.  Cabelo longo, liso, negro, uma manta sobre seus ombros e que inutilmente protegia seu pescoço, cuja pele eu adorava marcar, mesmo contra sua vontade.
                Víamo-nos ao menos uma vez por semana e naquele bar. Talvez nós nos víssemos com mais frequência – mas de forma menos significativa, mais corriqueira –, ao longo da semana, mas nosso encontro, o de verdade, era sempre naquele bar.
                Se ela não viesse sempre, eu duvidaria que ela gostasse de mim, duvidaria que ela quisesse me ver, pois olhava o relógio com frequência e sempre, a cada olhar escondido ao relógio, vinha a sorrir aquele sorriso, como mil braços, mil cordas e eu me perdia em rosa, nos seus lábios, queria mil abraços, mil beijos e ela me dava corda e terminávamos felizes – eu conseguia meus beijos e ela conseguia me prender.
                Vestido florido, curto, tomara que caia me tirando do sério e eu precisava me distrair de alguma forma, então chamei o garçom e pedi a ele duas doses de conhaque e uma soda e ele prontamente girou desengonçado entre os calcanhares e saiu desengonçado entre mesas para me atender. Ao menos tinha bom coração, gostava do que fazia e era extremamente eficiente. Soda misturada aos copos de conhaque, bebemos um gole e ela me fala que este é um drinque muito forte e ri sem jeito. Acompanho-a, sem muito efeito, apenas para ganhar tempo de olhar bem seus olhos. Desvio os olhos para suas mãos e escapa-me um suspiro – sempre escapava o mesmo suspiro, ainda que o mesmo escapasse tantas outras vezes de forma mais sutil.
                Pergunta-me o que houve, sabendo a resposta. Desvia os olhares e me beija as mãos e volta a me olhar, de um jeito incisivo, como que eu não tivesse direito de me chatear, mas que, ainda  assim, ela me perdoasse. Não que eu não estivesse confuso, mas eu aceitava o perdão de bom grado. Ela me beija o rosto e eu sou dela. Toda vontade que eu sentia era destinada a ela – para ser sincero, isso não era novidade: sentia-me à vontade com ela e toda semana esperava ansioso pelo encontro da semana que viria, o próximo que sempre prometia ser o último – e eu sorria por seu sorriso, estremecia quando passava seus dedos por seus cabelos para ajeitá-los e olhava sem graça para outra direção ao perceber que eu admirava-a.
                Sorrindo, libertei-me do seu cheiro, da sua visão e pus-me a olhar o mesmo quadro barato de antes. Aquele com cores frias, nublado, verde e azul do pasto ao redor do lago e um detalhe de uma cabana à margem e aquele quadro sempre terno sempre me alegrava com sua solidão, até lembrar-me que aqueles finos lábios rosa que cerravam aquela linda boca pequena já se abriram para contar-me que a paisagem lembra o casebre de seu marido, visto ainda da serra. Ela evitava olhar para o quadro por saber que me lembrava daquele meu rival.
                Eu seria capaz de passar todo esse tempo calado, sem tocá-la, apenas para apreciá-la ao meu lado. Eu seria capaz de matar todo e qualquer marido que viesse tomá-la de mim, roubar o que nunca foi meu por direito, mas quem saberia direito tomar o certo do errado se não há lei entre dois corações pulsantes? Então eis que ela me responde breve, com uma pergunta, mas como quem forçasse para não engasgar com verdades:
                - Se toda vez não fosse a última, você ainda iria querer ver uma mulher que não pode ser sua?
                E no mesmo bar simpático, com o mesmo quadro barato, com aquele mesmo garçom estabanado, com os mesmos drinques aguados, penso se a mesma guria de sempre que olhava sempre com olhos diferentes voltaria a me ver.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Ruído branco


                Poderia ser neon, mas é uma ponta de cigarro.
                Esfrego os olhos até o conhaque abandonar o borrão que acompanha a vista. Às quatro e meia, a tarde ainda costuma ser clara – e seria, não fosse o céu nublado. As cadeiras encontravam-se, em sua maioria, vazias. Ambulantes, comércio de rua, transeuntes, bêbados, colegiais, calouros, você e os demais. Entre um trago e outro, olho seus olhos.
                Vejo o carmim que contrasta tão bem com seu tom de pele curtido. Ouço sua voz e de repente é cinco. Vejo seu sorriso e continua cinco. Você me beija e de repente seis. Você me deixa e já é outro dia.
                Duas olheiras a mais, um maço a menos e um copo vazio, novamente ao parapeito – as cores me fogem e só me sobra novamente o cinza do nublado. Sem esperar, vejo gotas de chuvas  espalhadas e o horizonte como ruído branco, como que mostrasse que a vida não está em sintonia, estou perdendo o sinal e aos poucos o que está a poucos palmos fica turvo. Sem cores, sem visão, sem você.
                Poderia ser neon.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Soldado de Chumbo


                Esfregou os olhos e bateu o copo de dose na bancada. Apontou para o fundo do copo para o barman e esperou a nova dose chegar à borda. Olhou o fundo distorcido por trás do translúcido uísque, encarou o que não havia para se ver com olhar ébrio e novamente voltou sua atenção ao copo. Virou.
                Esfregou os olhos e bateu o copo de dose na bancada. Puxou um cigarro do bolso interno de seu paletó e levou-o à boca, acendendo-o.  A primeira tragada é única e ele sabe e aproveita – sopra lentamente a fumaça para a última estante de bebidas. Logo um homem razoavelmente alto, razoavelmente forte, razoavelmente idiota rudemente se põe a mandá-lo apagar o cigarro. Em resposta, Dmitri apaga o homem razoável.
                Educadamente convidado a retirar-se e agora com um olho roxo e duas mãos doloridas, Dmitri segue seu destino cambaleando debaixo de luzes amarelas e fracas dos postes enfileirados ao longo da rua. Com um novo cigarro à boca, lembra que Emília não gostava de seus cigarros. Ninguém gostava. Talvez só Emília importasse naquele momento.
                Emília havia sido sua última com seus olhos azuis, nariz aquilino, sapatilhas de bailarina e sorrisos e sorrisos. Dmitri decidira nunca mais vê-la e votos como tais jamais poderiam ser quebrados e em uma noite como essa ele obviamente iria até a casa dela.
                Não faltava muito para chegar e ele vinha pensando em como era uma pessoa difícil e que talvez não pudesse culpar Emília por tê-lo deixado, não poderia culpá-la por odiar o que havia de duro e frio nele – seus olhos de chumbo, seus punhos de chumbo, seu coração de chumbo – e tudo o que havia de mau e inconsequente, como seu alcoolismo, ou seu fumo exacerbado.  Suas noites não eram as mesmas há tempos e há tempos só lhe restava o negro sobre negro do céu sem estrelas da cidade grande, os vagalumes em volta dos postes – pequenas constelações urbanas –, o vermelho dos punhos, manchas sobre manchas que transbordamos sobre a vida como vinhos tintos sobre camisas de linho. Certas manchas, quando ficam, costumam estragar a melhor das camisas e em casos como este não há escolha senão a de jogá-la fora e vê-la queimar e queimar e queimar até que só reste a lembrança.
                Emília não gostava do boxe, não gostava das lutas, das brigas de bar. Encantaram-na até revelarem-se hábitos. Tentara dissuadir Dmitri a parar tantas vezes. Agora seria a vez dele de tentar dissuadir Emília e fazê-la parar de beber para escutá-lo, aceitá-lo novamente.
                Enfim chegara à portaria de seu prédio. Prédio antigo, com tanta classe.
                Emília...
                Interfonou e aguardou resposta, esperando que a mesma tardasse. Tão logo o tocou, uma voz doce e sonolenta respondeu um triste e sonolento “Alô?!” de quem esperou por horas. Entrou pela porta pesada de ferro com vidro e subiu a escada em espiral – o que sempre fora difícil enquanto estivera bêbado, ou seja, sempre – para chegar ao segundo andar.  A porta estava entreaberta, mas Dmitri bateu-a por hábito, para em seguida fechá-la. Emília esperava no sofá com estampa floral, com olhos tristes de azul sobre vermelho, pobremente iluminada por um abajur a meia-luz e pelo singelo ponto do cigarro em seu cinzeiro.
                Tamanho foi o espanto de Dmitri ao vê-la fumando. Como poderia ela... ? Fez o que tinha a ser feito: atirou o cinzeiro pela janela, quebrando-a. Emília acompanhou com os olhos o cinzeiro ao passo que ele abandonava seu lar e não teve reação. Dmitri apanhou o cigarro entre seus dedos e jogou-o no lixo. Seus olhos tremiam de excitação e raiva enquanto ele gritava para que ela fosse deitar, que ela dormisse e que tão logo se encerrasse aquela noite. Emília assentiu sem reação e foi deitar, escoltada por Dmitri até sua cama. Ao voltar para a sala, Dmitri viu um frasco vazio de Valium e soube finalmente que ela não estava bem. Que, apesar de seus olhos, de seus punhos, de seu coração, Emília o amava e que as noites sem ele também eram duras para ela. Esperança figurou em seu discreto sorriso ao sair e Dmitri se pôs a descer as escadas em espiral.
    Ao chegar ao portão de saída, parou. Parou para pensar na noite que se desenrolara e em quão estúpido vinha sendo.  Em como poderia ser melhor para Emília. Em como deveria ser melhor para ela. Pararia de beber, de fumar, de brigar. É, talvez houvesse esperança para tipos como ele, talvez fosse essa a chance de recomeçar. Ou não.
Sentiu cheiro de queimado. Cheiro forte de queimado e vinha de cima, talvez do segundo andar. Subia correndo as escadas em espiral, mas um passo em falso o fez cair e rolar escada abaixo. A dor lasciva percorria seu corpo e sua perna pulsava forte, tão forte – uma fratura exposta na tíbia esquerda era tudo de que Dmitri não precisava naquele momento. Apenas o álcool e a determinação mantinham a dor suportável o suficiente para checar se Emília estava bem.
À porta dela, percebeu que o cheiro vinha de seu apartamento. Por sorte a porta era feita de madeira frágil, mas ainda assim teve de se esforçar para arrombá-la. Aterrador fora sua visão ao entrar – o incêndio se alastrou pela casa inteira e o foco claramente era a lixeira. Mancava e cada passo era mais difícil que o anterior e tudo o que o movia era sua vontade de salvar Emília. Entrou em seu quarto para encontrá-la desmaiada, impossibilitada de acordar, impossibilitada de fugir, de sobreviver sem sua ajuda. Tomou-a em seus braços e pôs-se a correr o quanto pôde para fora daquele lugar, porém sua vontade era tanta, tanta e infelizmente não era o bastante – tropeçou sob seu joelho esquerdo e sentiu que não era mais possível continuar. A dor e a massiva inalação de fumaça estavam expulsando rapidamente sua consciência e Dmitri logo soube que não sobreviveria. Só pôde chorar, chorar por tanto, por tanto que não se atentou – o amor entre eles sempre estivera lá, no entanto agora estava fadado ao fim, a ser interrompido – “até que a morte os separe”.
Ao chorar, riu da ironia que era perder seus olhos de chumbo e perguntou-se se seu coração de chumbo iria finalmente derreter com o de coração de pano de Emília. Abraçou-a forte, agradeceu pelo incêndio e esperou pelo final.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

(Ensaio sobre) Cinza(s)


Ventava tanto. Muita gente abrigava-se naquela passarela aberta, no segundo piso. Carros passavam, logo abaixo, para-brisas trabalhavam lentos, debris se formavam ao centro da paisagem dos olhos desinteressados, fixos em lugar algum.
Eu olhava para qualquer lugar.
Céu cinza sobre nuvens cinza sobre prédios cinza com gente cinza e ela quieta me olhava. Sorria. Sorria um sorriso amarelo, amarelo, mas já me aquecia. Eu batia as cinzas só para desviar o olhar, para quebrar aquele momento insuportável, aquela saturação de ar nos meus pulmões, rubor em meu rosto, cinza todo o resto e eu não resistia e olhava novamente, apenas para vê-la sorrir e desviar o olhar.
Eu tragava para qualquer lugar.
As pessoas e os burburinhos, de mansinho se aquietavam pela minha falta de interesse e tornavam-se ruídos surdos, gente borrada, um blur no meio do nada, um momento particular. Meu momento. Talvez o dela, também, mas o meu momento.
Olhos cerrados, olho-a de lado e encontro seus olhos a me esperar.
Levanto para chegar à beira da passarela, passo meus olhos pelo cinza ao céu, pela chuva ao chão, pelas pessoas atravessando a rua com pressa – e elas riem, riem, riem e aproveitam um breve retorno aos dias de criança – e disfarço, mas penso nela e em como é estranho não ter outras coisas pelo que pensar. Bato as cinzas à beira e vejo o vento tragá-las consigo até longe, bem longe. Imagino que essa seja a liberdade – viver a mercê da corrente, sem escolha e sem rumo, sem culpa, sem fim. Apenas espera-se queimar e queimar bem rápido e deixar o vento trabalhar.
Nessas horas, principalmente ao ver novamente tais olhos negros com sorriso branco, agradeço por não ser livre. A escolha ainda é minha.

sábado, 30 de junho de 2012

Boneca de pano


                Dmitri esfregou os olhos, conforme o sono tomava-o. Bocejou e esfregou os olhos novamente. Escrever diante da tela de um notebook é completamente diferente de escrever diante de uma Ollivetti – perde-se a magia, perde-se o encanto, no entanto não havia escolha: sua tinta acabara.
                Mão esquerda à testa, mão direita à boca, aparando o cigarro que queria chorar. Aos poucos a mão esquerda deslizava por sua cabeça raspada até chegar à nuca, a qual acariciava com seu polegar. Pousou o cigarro no cinzeiro, o óculos na cama, esfregou os olhos novamente e tomou um trago de conhaque com soda e riu ao ver em si um pouco de Hemingway e em quão deprimente era o fato desta semelhança fugir a seus textos. Esfregou sua boca e sua barba por fazer, colocando seus óculos novamente.
                Página em branco.
                Levantou-se. Um passeio pela casa faria bem, ele pensou,  um passeio pela casa poderia ser o que eu preciso, mas ele não havia pensado no cheiro dela, no brilho impresso que seus olhos azuis haviam deixado na sala, na sombra que ainda fazia escurecer a varanda a meia-luz, nas curvas que marcavam seu lugar no sofá. Teria feito bem a algum outro escritor, mas Dmitri era dor. Era pura dor. E dor não se remedia com lembranças, mas instiga-se com passados não digeridos, não perdoados.
                Olhos ao teto, mãos passeando pelo rosto, até a nuca, até os ombros, olhos ao teto procurando algo de novo, algum esconderijo para a mente, para a solidão, para as memórias, para a torrente de tudo o que invadia o seu momento de luto, seu momento de luta contra a dor, contra si mesmo. Andou até a varanda, até a sacada e acendeu outro cigarro. Sentou ao sofá e viu algo novo nele: vazio.
Emília fazia falta.
Muita falta.
Andou de volta ao quarto para bater as cinzas do cigarro no cinzeiro perdido em sua cama. Ligou seu som e nele havia um pouco de Henderson e isso não o ajudava a sorrir. Pensou em chorar, mas não era de seu feitio mentir.
Página em branco – havia o que fazer?
Talvez fosse isso a incomodá-lo – seu amor com Emília fora reduzido a páginas em branco. Olhos doloridos, pulmões negros e mãos duras – tudo o que restou?

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Olhos azuis


            A primeira noite sem seus olhos azuis foi a pior. Bebi.
Bebo.
A noite, no caso, está sendo hoje, está sendo agora, está sendo e as lágrimas ainda correm e continuo fungando o que minto aos próximos ser gripe.
Todo esse tempo, esse último mês em que fui praticamente só seu enquanto descansava, me fez pensar que talvez precisasse de alguém assim, como você, e talvez tenha me enganado.  Seria você outra Beatriz? Seria esse mês outro devaneio? Seria essa outra das noites frias em que acendo um cigarro e olho pela janela – cotovelo raspando a sacada enquanto enxugo os olhos mais uma vez olhos tristes e cansados, mel levemente esverdeados quando o pranto resolve adorná-los?
Definitivamente não, pois não tenho cigarros.
E você dizia me amar, e dizia esperar por meus contos, dizia que eu era uma menina de dezesseis anos vestindo uniforme de internato católico – uma saia xadrez – enquanto arrisco a vida numa luta de canivetes comigo mesmo, com a vida, com minhas palavras e com você.
A vida muda, meus textos mudam.
Amarguei.
Amarguei e você não pode fazer nada. Você pôde fazer algo, mas sua chance passou. São você e seus olhos azuis, vocês me fizeram acreditar em algo que nunca quis existir. Senti a flor da sua idade, senti-me jovem, quase Beatriz, quando você me pôs a sorrir.
Te amei.
Te amo, talvez.
Te amo, talvez.
Te amo.
Te amo...



... talvez.

terça-feira, 24 de abril de 2012

O dia e as ruas


Puxou um cigarro do bolso.
                Antônio caminhava com um vazio nos olhos, com pés em zigue-zague, espasmos de consciência que o faziam virar a cabeça e tentar capturar no olhar o pouco que por ele passou enquanto passeava sem aparente destino pela rua, enquanto perscrutava entre pessoas sem destino e sem consciência, apenas o vazio – um pouco nos olhos, outro tanto nos bolsos, e o resto no coração.
                Rua cheia, comércio cheio, céu cheio: estava nublado, embora fosse possível ver o brilho do Sol insistindo por trás das nuvens. Prédios chatos de cores chatas e janelas chatas, borradas e sujas, tão impessoais e cínicos, obedecendo a seu propósito. Nas ruas, mares de carros e gente, sempre em trânsito, sempre se vai a algum lugar, sempre. Nas calçadas, estandes diversos, com tal variedade jamais desafiada, todos eles iguais e todos oferecendo o que não se encontra em nenhum outro lugar.
                Colocou-o na boca.
                Lembrou-se da noite anterior e de como parecia impossível adormecer ao lado de alguém, principalmente dela. Principalmente dela e por isso foi embora, por isso vestiu a camisa e os sapatos, abriu a porta e foi embora, enganando a si mesmo ao dar o rabo do olho, ainda que por tão pouco tempo, para a porta agora fechada e então virar-se e partir.
                Os corredores são maltratados. Os corredores são, por definição, maltratados. Os quartos sempre ficam com a glória, sempre são cenários de história, diálogos marcantes de livros, clímax, anticlímax, finais. Metade de um romance em chave se dá em quartos, o escritor médio-amador usa quartos como lugares seguros onde se expõe o introspectivo.
                Acendeu-o.
                Mal pôde vê-lo chegar, apenas sentir seu ombro agora tocado, puxado com força. Ao virar-se pôde sentir um punho esmagar sua face, rasgar a pele que adornava sua bochecha esquerda, quebrar seu nariz e desperdiçar seu sangue. Talvez tenha sido mais violento, o impacto do ombro direito ao chão, mas ao menos teve tempo para rastejar para trás e recobrar o equilíbrio e também a visão. Ainda turva, pôde discernir sombras e aos poucos formas e viu seu rosto – Dmitri, um cigarro nos lábios, com um sorriso cínico. Sussurrou, com a boca imóvel, “Isso é por dormir com a Vanessa.”, deu as costas e foi embora.
                Rua cheia, comércio cheio, céu cheio: o céu aos poucos se abria, mas infelizmente o Sol já não brilhava tanto. Gente chata com jeitos chatos e caras chatas, borradas e sujas, tão impessoais e cínicas, obedecendo a seu propósito. Nas ruas, poucos corações, sempre em trânsito, sempre se deseja estar em outro lugar, sempre. Nas calçadas, gente diversa, ninguém igual a ninguém, mas todos iguais e todo lugar é o mesmo lugar.
                Tragou-o e tomou-o entre os dedos – em momento algum lhe passou pela cabeça olhar para trás.