sexta-feira, 23 de abril de 2010

Chuva de Outono

Era uma noite de outono carioca. Uma noite que se via, uma noite que seguia aos dias da grande enchente do último ano da primeira década do século vinte e um. Um desastre que fez milhares de vítimas: algumas morreram, outras perderam tudo, enquanto algumas só perdiam a sanidade. Claro que eu estava entre os últimos. Foram alguns dias trancados em casa, pensando, bebendo, compondo, escrevendo, amando e vivendo numa alegoria claustrofóbica que gera a antítese da globalização: tudo se expande, tudo se contrai. Mas, voltando: era uma noite de outono, uma fria noite de outono. Bebia uma cerveja não tão fria e deixava o vento me acariciar o corpo nu: era uma forma de ter a breve certeza de que estou vivo. Não saía de casa há dias, não via mulheres há semanas, não era feliz de verdade há meses e já não me conhecia há anos. Estou tão certo disso quanto dois mais dois são três e que não me corrijam enquanto vivo.

Já estive feliz há pouco tempo, mas eram outros tempos, claro. Pra ser sincero, era o mesmo tempo, mas cismo em não levar uma coisa em conta: estou naquele momento duro em que um homem sente o peito pesado, o estômago enrugado e contraído, a vista cansada e ao mesmo tempo viva. Quando temos alguém para nos trazer um vazio que precisa ser suprido, a garota que cisma em ser seu novo cigarro, sua nova ferida e essa guria não seria diferente. Ela foi o primeiro registro de pessoa boa que passou pelos meus olhos e, convenhamos, isso haveria de impressionar. Se até hoje tenho fé no abstrato, em parte isso foi por conhecê-la.

Ao passo que vou datilografando, ao passo que vou atacando aos poucos minha Bohemia, vou lembrando de seu sorriso, seu lindo sorriso. Lembrando da primeira vez em que decidi que gostaria de ser a razão dele e que nunca faria mal algum que lhe fizesse ir embora, pois não haveria por que viver no momento em que seus lábios se fechassem bruscamente. A chuva pode ter despertado meu lado platônico adormecido, mas foi ela, a menina, quem impediu que ele morresse: se há tempos não sorrio como ela me fez sorrir, foi por ter perdido a fé no belo, no todo, no verdadeiro e utópico sonho. Já vivia na realidade, a falsa tragédia da vida. Como diria Gessinger, entre o real e o abstrato, entre a loucura e a lucidez: já não vivo dono de mim. Penso, às vezes, que sou esquizofrênico, pois me perco entre o sonho e o acordar. Tenho medo de minha introspectiva personalidade pregar peças aos meus sentidos. Muitos achariam que tomo remédios, outros achariam que eu deveria tomar, mas não, eu não tomo. Talvez eu só precise disso: evitar a realidade, evitar a chuva que faz desabar vidas, que tira casas, que afoga ruas e que alaga a gente, que amarga a gente, que afaga a gente que evita gente.

Confesso que saí dois dias depois da tragédia. Chovia. Aproveitei pra chorar.