sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Capítulo 01

                Um gosto amargo na boca. Era horrível lidar com o estômago contraído logo pela manhã. Os olhos pesados, doloridos, maltratados pelo sol que passava pelas persianas pela manhã – ou já seria tarde?, definitivamente tarde – da primeira manhã do ano. O réveillon sempre cobrava e cobrava caro. O esforço de levantar em manhãs como essas sempre levantava a dúvida – vale a pena, isso? Não que a resposta importasse, nunca importou. Cachorros velhos não aprendem truques novos.
                Acho que primeiros passos em casos assim têm de ser bruscos. O resto da bebida direto pra dentro, os dois pés no chão, superar o zumbido no ouvido, o que for – não se deixar impedir de começar o dia, o que, tratando-se de alguém assim, pode ser qualquer coisa.
                Acho que primeiros passos não deveriam ser tão gelados, não sei por que diabos esse piso continua frio desse jeito em pleno verão. Mas é como dizem – um passo atrás do outro. E outro. E outro... E BOSTA EU TENHO QUE VOMITAR.
                Corro ao banheiro, levanto a tábua e meio que não deu tempo. É sempre uma questão de sorte – filósofos, conquistadores baratos e autores de livros de autoajuda concordariam que é um jogo de números. Às vezes a gente acerta, às vezes a tábua paga o pato. E junto pagam o piso e boa parte do último rolo de papel higiênico da casa. Mas ao menos me sinto melhor, todo mundo que acorda bêbado deveria ao menos tentar vomitar pela manhã. Dentro do vaso, de preferência.
                Macarrão. Queijo. Pedaços de bife. Na verdade, tiro duas conclusões desses pedaços de bife na parede – eu deveria passar um pouco mais dessa carne tão vermelha e, sem dúvidas, mastigar melhor minha comida. Mas é tão bom quando a bebedeira passa e a gente fica sóbrio e exausto e consegue levar o dia até a próxima soneca da tarde. Boa coisa que não trabalho pelos próximos dez dias.
                Acendo meu último cigarro logo depois de limpar a boca com a manga da camiseta, visto as calças de ontem, ponho um chinelo e ando até um posto de gasolina a dois quarteirões de casa. Os quatro lances da escadaria do prédio meio que já me matam de cara, mas o resto da caminhada é mais agradável, com todo aquele vento fresco que corta o abafado de uma noite muito mal dormida. Primeiro de Janeiro e as ruas estão completamente vazias e, para ser bem sincero – cruel de tão sincero, mortalmente sincero – um certo medo infantil me invade ao cogitar que o tal posto, como todo o resto do comércio, estivesse fechado por conta do feriado. A menos de cinquenta metros de lá, ainda não sei dizer. Atravesso outra rua. Tomara. Espera. Foi, tá aberto. É isso. Só mais uma rua a atravessar e pronto. Mas como que uma farmácia pode estar fechada hoje? Poderia ser Natal, poderia ser aniversário de alguém, poderia ser qualquer coisa – é uma farmácia e essa porra não pode fechar. Enfim, me dá dois Marlboros. Caixa. Não, desculpa, quero do branco. Obrigado a você e feliz ano novo.
                É isso – e, sim, quando fico contente eu repito esse tipo de frase. É isso mesmo.  Mas posso assegurar que a melhor parte de voltar para casa é que demora muito menos que ir de casa até, bem, até onde for. É um destino certo, nada pode dar errado e sua casa estará sempre lá, é só não parar para filho da puta algum. Apesar de ser um movimento mais complicado, até subir as escadas voltando vale mais a pena. E quanto mais perto de chegar, mais rápido a gente tenta ir. Abro a porta de casa para receber meu cachorro – uma coisinha minúscula, peluda e super carente – com um pouco do meu vômito escorrendo dos pelos do seu queixo. Acendo um cigarro, vou à cozinha e pego uma toalha dessas e molho um pouco para lavá-lo. O garoto é minha vida, lembro-me de pensar. Um bom beijo nele, uma garrafa de cerveja e já posso voltar para a cama. Até que para um primeiro dia do ano as coisas correram mais ou menos bem. EXCETO QUE QUEIMEI MEU LENÇOL COM PONTA DE CIGARRO DE NOVO, PUTA QUE O PARIU, OUTRO BURACO.

                Mas a gente sabe que cachorros velhos não aprendem truques novos.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Caco

   Uma noite como outra qualquer, daquelas nas quais se bebe um copo de uísque e entre um piscar e outro mais longos se nota um ou outro alguém que passa pela escura e cinza rua, cujas árvores se expressam opacas em gradiente do cinza ao verde. Os postes não iluminam mais que a lua, com suas luzes âmbar quase nuas em seus brilhos quase turvos, frágeis como os olhos aguados da mulher aos prantos no iphone capa branca, lábios róseos e unhas roídas. Uma entre várias, infinitas. Várias cadeiras vazias, iguais, singulares em plural, dando vezes a ocupadas tão logo as ruas cheias dão espaço às vazias.    
   Poças dão vez às gotas que não tão poucas se formam rios – as ruas sujas desaparecem conforme o ar se torna frio – e os bares enchem seguindo os copos que pouco a pouco se esvaziam.
   
   A moça loira de rosto inchado e olhos vermelhos olhou pro lado e viu um espelho no vidro do carro – tão logo pôde se distraiu: um copo a mais de uísque, por favor.

   Nem os copos são únicos.
   Nem ruas, nem chuvas, nem brilhos quase turvos de postes de linhas duras em cenários tristes, escuros.
   Quando os copos caem, tornam-se singulares e plurais – todo caco é copo.
   Pessoas também.

terça-feira, 22 de março de 2016

O sanduíche mais simples

Não precisava de muito para ser feliz. Acordava metade de seus dias na casa dela, na cama dela – na maioria de ressaca – e olhava aquele rosto frágil e belo e adormecido em seu ombro direito, aqueles longos e cheios cabelos negros espalhando-se de seu pescoço à ponta semi-rija de seu pênis caído entre suas pernas. Aquelas pernas trançavam as suas e aqueles braços lhe tomavam posse. A respiração era aquela ofegante daqueles de sono irrequieto e o quarto estava sempre escuro. Por muito tempo a insônia lhe abandonou, mas das últimas vezes lhe fez companhia. O aparelho condicionador voltara a lhe incomodar o nariz ao acordar e já não era a mesma coisa acordar às quatro naquele quarto.
Levantava e desligava o aparelho e abria as cortinas. Lembrava-se de sua nudez, mas àquela hora não se faria incômodo. Abria as janelas e olhava o céu púrpuro incandescido pela iluminação dos diversos prédios vizinhos, criando o contraste do neon contra o escuro. Ventava, mas era tão gostoso. Buscou na mesa de cabeceira seu Camel e seu isqueiro de prata, ambos pela metade, apoiou seus cotovelos no parapeito e acendeu. Fechou os olhos e sentiu o primeiro trago do dia preencher cada alvéolo em seus pulmões. Abriu os olhos e esfregou a remela formada por uma boa noite de sono – e dessa vez nem acordara tão enjoado, só bebera quatro doses na noite anterior. Olhou para sua máquina de escrever portátil e sentiu vergonha de si mesmo. Sempre que dormia fora, carregava-a e havia meses que não escrevia nada. Estava feliz. Diziam que por isso era incapaz de escrever. Jogou a guimba pela janela e viu-a espatifar-se de um canto a outro do pequeno pátio interno do condomínio, o brilho do fogo ainda desperto no cigarro ziguezagueando entre os quiques, até finalmente apagar-se.
Afastou-se da janela e tateou o chão da sala – esta mal iluminada – para encontrar sua calça jogada, então levantando e vestindo-a. Faria o café, não fosse a preguiça. Droga!, por que nâo fazer o café? Ela acorda às oito, mas é só fazer outro depois, de novo. Mas é uma pena que nesta casa não haja nenhuma bebida – pensou. – Realmente me faz falta em momentos como esse. Vestiu sua camiseta e desceu, levando sua chave da casa dela, para buscar alguma bebida na rua. A essa hora nenhum dos poucos lugares abertos vendia bebida, exceto por – fora do cardápio – uma lanchonete de esquina de uma rua paralela. É uma caminhada rápida, pensou.
Na metade do caminho para o fim da rua, cruzou com um morador de rua corpulento, bem idoso, maltrapilho como de costume, porém era notável como suas roupas conservavam, senão no aspecto, a aparência de terem sido caras alguma vez há muitos anos.
- Olá, meu jovem, tudo bem com o senhor? Voltando da igreja? – perguntou  o morador de rua.
- Boa noite. Não, não, estou indo comprar algo para beber. O senhor me acompanha?
- Não bebo há muitos anos, meu filho – mentiu, pois seu hálito entregava a fome e a embriaguez disfarçada na voz. – Mas devo lhe pedir ajuda. Estou muito cansado, durmo na rua já há três semanas e meus pés já estão muito cansados. Será que o senhor não poderia me pagar uma diária em algum hotel da região? Uma noite no quarto mais simples e é tudo que lhe peço. Estou muito cansado – disse entre tosses.
- Não sei, não trouxe muito dinheiro. Não posso lhe pagar algo para comer?
- Não me ajuda como uma noite em uma cama, mas pode ser. Podemos ir a uma lanchonete lá na frente? Peço o sanduíche mais barato, o mais simples, e isso já me seria ótimo – sua voz era calma, grave e pausada, digna de um senhor de idade.
- Pode pedir mais que isso e eu já ia àquela lanchonete. Beba comigo ao chegar lá.
- Mas lá vende bebida? Alcoólica, quero dizer? – perguntou surpreso.
- Sim, mas tratemos de andar.
E caminharam pela rua quase deserta, cheia de porteiros de hotel, casais turistas – tanto os apaixonados, como os que tentavam salvar suas relações frágeis e antigas – e os poucos trôpegos ébrios naturais das manhãs de quarta-feira.
Enfim chegaram, a passos lentos de quatro pés inchados, à lanchonete. O velho fez seu pedido – o mais simples, como prometera – e o rapaz pediu duas doses de conhaque barato, a única bebida que a lanchonete dispusera a vender clandestinamente. Bebemos e Dmitri pediu mais duas doses para viagem, pagando logo em seguida e deixando o velho a lhe agradecer e a comer seu sanduíche.
Voltou ao apartamento sem fazer barulho, truque que aprendera em seus anos de adolescente chegando bêbado na casa de seus pais pela madrugada. Pôs água a ferver e bebeu meia dose da bebida vagabunda enquanto isso. Ao fim do processo, despejou a água no pó e fez então o café a beber. Forte, pensou, como sempre. Mas faltava o conhaque – e logo o misturou. Após duas xícaras, ligou o abajur, encontrou seu livro debaixo da mesa de centro e começou a ler. Poucos impressionaram-no tanto como Huxley e decerto mesmo Huxley seria incapaz de impressioná-lo novamente após A Ilha. Com o tempo viria a ter sono e nesses momentos levantar e fumar na janela seria a solução.
Viu o céu clarear, o segundo copo esvaziar e sua mulher despertar. Primeiro os olhos, depois a coluna e num rápido movimento os braços e as pernas. Tremiam conforme esticavam-se e um sorriso formava-se conforme ganhava-se consciência. Insônia de novo, bebê, perguntou. Mas claro que sim, Dmitri respondeu. Você não fumou na janela, fumou? A casa está fedendo! Dmitri então fechou seu livro e caminhou até a cama. Beijou-a. Prometo compensar, disse enquanto tirava a camiseta. Era engraçado, pensava, pois momentos como esse, em dias como esse, nos quais o céu ainda brilhava magenta, lembrava-se de Um País Estranho de Hemingway, lembrava-se de como entrava em qualquer outro lugar ao entrar nela. Não tinham mais um canto para si, tinham o mundo inteiro e nada mais, não havia mais ninguém. É muito grande pra mim, ela dizia, e de fato era o que ele sentia também. Ao terminar, o arfar diminuía e o céu perdia o brilho do amanhecer e tomava o opaco tom azulado da manhã já formada. Eu faço o café, disse ele. Para variar, zombou Amélie.
Já quase atrasado, tomou seu café e seu banho, deixando Amélie para se arrumar e despedindo-se com um beijo. Da casa dela a seu trabalho não eram mais de vinte minutos a caminhar e decidiu ir. Trabalhava em uma agência de publicidade no topo de um prédio comercial na zona sul do Rio de Janeiro. Era mais uma manhã difícil, como outra qualquer. Principalmente ao lembrar que não era feliz. Não com seu trabalho, não com sua vida, muito menos com seus vícios. Um dia de trabalho não era o suficiente para levar paz a sua mente.
Às sete saiu e foi a um bar encontrar-se com alguns amigos. Eram como ele, pensou. Todos tinham olhares vazios cheios de brilho, típicos de quem se rende à vileza do álcool e das drogas. Dmitri lembrava-se das noites de recuperação nas reuniões em que frequentava, lembrava-se da força que tinha, da serenidade que não tinha e da sabedoria que lhe escapava. Pensou no mundo doente em que habitava, no qual as pessoas tinham vergonha de viver e cujo esporte era o de disfarçar a repulsa à vida com celebrações.
Um rapaz disse uma vez que Dmitri não conseguia escrever justamente por estar feliz. Para que fosse capaz de escrever, era necessário estar triste e magoado, humilhado, derrotado pelo dia-a-dia que feroz consome toda fagulha da energia que aqueles que pensam demais são capazes de criar.
Naquela noite, lá pelas onze, o bar vazio e os copos cheios – os copos daqueles que ficam, daqueles sem brilho – o céu sem estrelas como só a cidade grande de prédios de lâmpadas amarelas que nunca apagam, nem mesmo às cinco da manhã, é capaz de convidar, naquela noite, naquela escuridão, Dmitri lembrou-se que não precisava de muito para ser feliz.

Então despediu-se dos demais, pediu um táxi para voltar para sua casa e pôs-se a escrever.