sábado, 19 de junho de 2010

O Sino e a Fé

Era uma noite de sábado e eu estava fatigado. Seis e meia da noite e o Sol já vinha se escondendo desde cinco e tantos e o céu já se embebia de uma tinta azul marinha, do crepúsculo que perde seus tons róseos. Como que observasse uma vila do alto de uma torre, vendo as famílias mudarem ao longo de anos, vendo as estações mudarem ao longo de meses, vendo as vidas mudarem ao longo de dias, via o mundo afora de uma janela de ônibus em movimento, tantas pessoas iguais em corpos diferentes. Como Orwell diria, “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais que outros”. Do alto dos vinte e um anos que se desvendaram aos meus olhos - por mais arrogante que a frase possa ter soado – posso dizer com certa autoridade que somos todos iguais, em detrimento de mínimas particularidades: todos têm cruzes a carregar e cruzes a distribuir a demais bichos, ou pessoas, arranje a metáfora como bem quiser.

O ônibus foi chegando ao seu ponto final e a manta azul-escura do céu se manchava por um tom negro com poucos brilhantes espalhados ao longo de sua triste expressão. As luzes dos postes distribuídos eqüidistante e uniformemente ao longo da rua então dispararam de suas lâmpadas frias. Pessoas se aglomeravam e de forma desordenada e aconchegante em poucos e pequenos bares locais: cá estava eu em uma pequena praça circular na toca que era o bairro Grajaú.

Falseei um passo ao descer do ônibus, mal de uma das pernas, e entre os burburinhos e sorrisos ébrios eu notei uma paisagem ao fim de um breu no caminho: havia uma igreja, uma igreja católica nos arredores da praça. Erguiam-se grades de cor cinza ao seu redor e seus muros eram alvos como uma alma deveria ser. O movimento era estático, como se toda a fé houvesse sido perdida, e todo o momento se perdia numa foto que se descolava da retina seca de um cético entre outros que aceitavam que se abandonasse a graça ao longo das iniqüidades que a vida nos oferece e nos obriga a receber. No topo da igreja, entretanto, havia algo que era tão comum entre as igrejas, todas as igrejas, e mesmo assim chamava minha atenção: o sino e a arquitetura que lhe cobria. Por algum motivo, as paredes que guardavam a fé que o sino propagava com o som traziam-me a segurança de ser um eterno espectador, acima dos demais, longe de qualquer perigo, longe de qualquer contato, longe de qualquer um. Havia qualquer coisa de megalomania naquela aproximação profana de tornar deus um mundano, eu sabia disso. Gostava.

As conversas se esforçavam por me desestabilizar e quão rápido eu voltava do meu devaneio, me encontrava tonto entre tantas bocas e copos e tudo ali soava como que chamando a lua que tímida chegava, disposta a brilhar. Entre o papo que se partia eu passeava na esperança de passar batido. As palavras se misturavam, mas eu, por acaso, tinha a noção de alguns pedaços de conversas e me impressionava o quanto as pessoas tinham perdido a fé, umas nas outras. Algo que ainda consegue me impressionar, também, é o frágil limiar que separa ruídos de gritos: poucos segundos podem ser o suficiente para mudar um momento inteiro. Na ínfima distância de uma polegada entre o rosto e um copo de cachaça, tal copo pode tombar entre os lábios do tal rosto e o compasso haveria de acelerar naturalmente. Antes de conseguir atravessar o mar de mesas amarelas patrocinadas por alguma cerveja popular qualquer algumas das palavras trocadas soam mal entre interlocutores e toda paz se esvai. O rosa dos rostos bêbados dá a vez a um vermelho intenso de um rosto exaltado, nervoso – o tipo de nervosismo que não se sabe se é apreensivo, afobado, destemperado – os copos, outrora à procura de lábios, agora se derramam em queixos, em mesas, no chão acompanhados por vidros quebrados. Cada vez mais acuado, eu fujo - Seria destoante se todo o cenário já não fosse pitoresco: os movimentos bruscos conduziam uma sinfonia dissonante em uma orquestra de gestos diatônicos levemente descompassados. Em pouco mais de dez segundos – daqueles que parecem demorar horas e horas – eu me vi na esquina, a salvo daquela gente tão aleatória!, tão perigosa!, tão imprevisível!, tão livre! Nossa! Todos eram livres e eu não entendia, pois sempre me ocupei, sempre me preocupei demais, o “sempre” quase sempre esteve lá e isso quase nunca importou. Talvez a tão procurada fé estivesse na liberdade – na imprevisibilidade – no aceitar – no desencadear natural dos fatos – na falta de tato – no ato falho, faltoso – no charmoso Deus-dará – no ar noir em que vivemos dia após dia, entre os tragos do cigarro que nós mesmos enrolamos num lento e quase sagrado ritual.

O erro do ser humano talvez fosse procurar pela fé no alto de uma torre, em um sino qualquer. Talvez o erro fosse mais grave, mas jamais o mais tolo e, portanto, mais humano. Acho que isso justifica qualquer erro, justifica qualquer fé.