quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Insistindo no quê?

Nem eu sei.

Surdo em cinema-mudo

E as cenas se repetem como fariam normalmente, não fosse o clima – chovia quase todo dia, embora no meu quarto não houvesse janelas. Pinto belos quadrados azuis levemente mal alinhados e borrados de branco – quanto mais lá no alto, melhor – e me engano dizendo que o tempo está bonito, mas as goteiras que escapam da infiltração no teto cismam em denunciar o tempo ruim que está fazendo. Minhas plantas morreram, não sei por que: rego-as com carinho e cuidado e deixo-as expostas ao meu sol particular, meu abajur – tão lindo, ele –, mas eis que elas morrem e não entendo – estão tão pretas, tão caídas, tão apáticas e contrastam com a luz que divide um cantinho da parede com elas. Espero por um arco-íris, mas ele não vem e eu fico só, no meu quarto, no meu mundo, na minha micro-esfera, na minha.

Às vezes esqueço-me da porta e uma visita me surpreende – minha reclusão resultou numa sombria incapacidade, talvez inabilidade de falar: algo como uma atrofia nas cordas vocais, ou um bloqueio mental, uma timidez exacerbada – e sinto-me desqualificado, um peixe fora d’água. Exceto com Ela, com quem não falo: Ela vem, invade meu mundo para me ignorar – olha através da minha janela falsa, se protege da chuva que a banheira do andar de cima e o mau estado do prédio produzem, faz de tudo para não ver o arco-íris que não está lá – e, sem motivo, continua a me ver, a me tocar quando durmo, a me observar aos sonhos que me afligem tanto quanto os pesadelos. Mas só Ela me faz bem. Só com Ela me sinto aceito, apesar d’Ela não me aceitar – com Ela, me sinto um surdo num cinema mudo e eu finalmente entendo. E as cenas se repetem como fariam normalmente, se não fosse a platéia.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Aproveitando formatações

Às vezes, simplificar complica!
Enfim, a ela!

Um rombo em mim

você foge de mim há dias

eu te procuro e você está em

outro lugar

e quando eu menos espero,

tenho de te achar onde

onde menos espero,

veja só – você abriu um rombo em mim

não aja como se ligasse

E ESTOU FALANDO COM VOCÊ!

FIQUE QUIETA!

OLHE PARA MIM!

OLHE PARA MIM!

assim está melhor

não podemos continuar assim

não posso continuar assim

estou falando

e

enquanto isso

você se vai

sem, nem mesmo,

se despedir...

domingo, 3 de outubro de 2010

Voltando mais rápido

Do que quando deixei este lugar.

Diferente de qualquer outro dia

diferente de qualquer outro dia
sentei de frente para a máquina de escrever
um copo cheio e uma garrafa pela metade
vinho escorrendo da boca ao queixo

pensei nos dias que passaram
e nas pessoas que conheci,
nas pessoas que revi,
nas pessoas que encontrei,
nas pessoas que imaginei,
no resto que passou desapercebido
despercebido
e decidi não escrever

não é vergonha
vontade de esconder
o que acontece de dez às quatro
é preservar na memória
o que nenhum papel poderia abrigar
nenhuma tinta poderia representar
nem valeria a pena imaginar
para ter a ideia errada

do que valeu a pena acontecer

Eu poderia dizer que voltei

Mas seria mentira, pois nunca fui embora. Só estive jogado por aí em outro plano, ébrio.

Zumbido

Estive ouvindo um zumbido
No fundo do meu ouvido
Era agudo e comprido
O maldito zumbido

Acordei cansado
Garrafas por todo lado
Vômitos da noite passada
E o maldito zumbido

Poderiam ser marimbondos
Ou abelhas, estou supondo
E parou como um repentino estrondo
O tal maldito zumbido

E a insuportável luz do dia
Minava a minha alegria
E o zumbido que se repetia
Acho que era o fim da minha bateria

sábado, 19 de junho de 2010

O Sino e a Fé

Era uma noite de sábado e eu estava fatigado. Seis e meia da noite e o Sol já vinha se escondendo desde cinco e tantos e o céu já se embebia de uma tinta azul marinha, do crepúsculo que perde seus tons róseos. Como que observasse uma vila do alto de uma torre, vendo as famílias mudarem ao longo de anos, vendo as estações mudarem ao longo de meses, vendo as vidas mudarem ao longo de dias, via o mundo afora de uma janela de ônibus em movimento, tantas pessoas iguais em corpos diferentes. Como Orwell diria, “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais que outros”. Do alto dos vinte e um anos que se desvendaram aos meus olhos - por mais arrogante que a frase possa ter soado – posso dizer com certa autoridade que somos todos iguais, em detrimento de mínimas particularidades: todos têm cruzes a carregar e cruzes a distribuir a demais bichos, ou pessoas, arranje a metáfora como bem quiser.

O ônibus foi chegando ao seu ponto final e a manta azul-escura do céu se manchava por um tom negro com poucos brilhantes espalhados ao longo de sua triste expressão. As luzes dos postes distribuídos eqüidistante e uniformemente ao longo da rua então dispararam de suas lâmpadas frias. Pessoas se aglomeravam e de forma desordenada e aconchegante em poucos e pequenos bares locais: cá estava eu em uma pequena praça circular na toca que era o bairro Grajaú.

Falseei um passo ao descer do ônibus, mal de uma das pernas, e entre os burburinhos e sorrisos ébrios eu notei uma paisagem ao fim de um breu no caminho: havia uma igreja, uma igreja católica nos arredores da praça. Erguiam-se grades de cor cinza ao seu redor e seus muros eram alvos como uma alma deveria ser. O movimento era estático, como se toda a fé houvesse sido perdida, e todo o momento se perdia numa foto que se descolava da retina seca de um cético entre outros que aceitavam que se abandonasse a graça ao longo das iniqüidades que a vida nos oferece e nos obriga a receber. No topo da igreja, entretanto, havia algo que era tão comum entre as igrejas, todas as igrejas, e mesmo assim chamava minha atenção: o sino e a arquitetura que lhe cobria. Por algum motivo, as paredes que guardavam a fé que o sino propagava com o som traziam-me a segurança de ser um eterno espectador, acima dos demais, longe de qualquer perigo, longe de qualquer contato, longe de qualquer um. Havia qualquer coisa de megalomania naquela aproximação profana de tornar deus um mundano, eu sabia disso. Gostava.

As conversas se esforçavam por me desestabilizar e quão rápido eu voltava do meu devaneio, me encontrava tonto entre tantas bocas e copos e tudo ali soava como que chamando a lua que tímida chegava, disposta a brilhar. Entre o papo que se partia eu passeava na esperança de passar batido. As palavras se misturavam, mas eu, por acaso, tinha a noção de alguns pedaços de conversas e me impressionava o quanto as pessoas tinham perdido a fé, umas nas outras. Algo que ainda consegue me impressionar, também, é o frágil limiar que separa ruídos de gritos: poucos segundos podem ser o suficiente para mudar um momento inteiro. Na ínfima distância de uma polegada entre o rosto e um copo de cachaça, tal copo pode tombar entre os lábios do tal rosto e o compasso haveria de acelerar naturalmente. Antes de conseguir atravessar o mar de mesas amarelas patrocinadas por alguma cerveja popular qualquer algumas das palavras trocadas soam mal entre interlocutores e toda paz se esvai. O rosa dos rostos bêbados dá a vez a um vermelho intenso de um rosto exaltado, nervoso – o tipo de nervosismo que não se sabe se é apreensivo, afobado, destemperado – os copos, outrora à procura de lábios, agora se derramam em queixos, em mesas, no chão acompanhados por vidros quebrados. Cada vez mais acuado, eu fujo - Seria destoante se todo o cenário já não fosse pitoresco: os movimentos bruscos conduziam uma sinfonia dissonante em uma orquestra de gestos diatônicos levemente descompassados. Em pouco mais de dez segundos – daqueles que parecem demorar horas e horas – eu me vi na esquina, a salvo daquela gente tão aleatória!, tão perigosa!, tão imprevisível!, tão livre! Nossa! Todos eram livres e eu não entendia, pois sempre me ocupei, sempre me preocupei demais, o “sempre” quase sempre esteve lá e isso quase nunca importou. Talvez a tão procurada fé estivesse na liberdade – na imprevisibilidade – no aceitar – no desencadear natural dos fatos – na falta de tato – no ato falho, faltoso – no charmoso Deus-dará – no ar noir em que vivemos dia após dia, entre os tragos do cigarro que nós mesmos enrolamos num lento e quase sagrado ritual.

O erro do ser humano talvez fosse procurar pela fé no alto de uma torre, em um sino qualquer. Talvez o erro fosse mais grave, mas jamais o mais tolo e, portanto, mais humano. Acho que isso justifica qualquer erro, justifica qualquer fé.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Chuva de Outono

Era uma noite de outono carioca. Uma noite que se via, uma noite que seguia aos dias da grande enchente do último ano da primeira década do século vinte e um. Um desastre que fez milhares de vítimas: algumas morreram, outras perderam tudo, enquanto algumas só perdiam a sanidade. Claro que eu estava entre os últimos. Foram alguns dias trancados em casa, pensando, bebendo, compondo, escrevendo, amando e vivendo numa alegoria claustrofóbica que gera a antítese da globalização: tudo se expande, tudo se contrai. Mas, voltando: era uma noite de outono, uma fria noite de outono. Bebia uma cerveja não tão fria e deixava o vento me acariciar o corpo nu: era uma forma de ter a breve certeza de que estou vivo. Não saía de casa há dias, não via mulheres há semanas, não era feliz de verdade há meses e já não me conhecia há anos. Estou tão certo disso quanto dois mais dois são três e que não me corrijam enquanto vivo.

Já estive feliz há pouco tempo, mas eram outros tempos, claro. Pra ser sincero, era o mesmo tempo, mas cismo em não levar uma coisa em conta: estou naquele momento duro em que um homem sente o peito pesado, o estômago enrugado e contraído, a vista cansada e ao mesmo tempo viva. Quando temos alguém para nos trazer um vazio que precisa ser suprido, a garota que cisma em ser seu novo cigarro, sua nova ferida e essa guria não seria diferente. Ela foi o primeiro registro de pessoa boa que passou pelos meus olhos e, convenhamos, isso haveria de impressionar. Se até hoje tenho fé no abstrato, em parte isso foi por conhecê-la.

Ao passo que vou datilografando, ao passo que vou atacando aos poucos minha Bohemia, vou lembrando de seu sorriso, seu lindo sorriso. Lembrando da primeira vez em que decidi que gostaria de ser a razão dele e que nunca faria mal algum que lhe fizesse ir embora, pois não haveria por que viver no momento em que seus lábios se fechassem bruscamente. A chuva pode ter despertado meu lado platônico adormecido, mas foi ela, a menina, quem impediu que ele morresse: se há tempos não sorrio como ela me fez sorrir, foi por ter perdido a fé no belo, no todo, no verdadeiro e utópico sonho. Já vivia na realidade, a falsa tragédia da vida. Como diria Gessinger, entre o real e o abstrato, entre a loucura e a lucidez: já não vivo dono de mim. Penso, às vezes, que sou esquizofrênico, pois me perco entre o sonho e o acordar. Tenho medo de minha introspectiva personalidade pregar peças aos meus sentidos. Muitos achariam que tomo remédios, outros achariam que eu deveria tomar, mas não, eu não tomo. Talvez eu só precise disso: evitar a realidade, evitar a chuva que faz desabar vidas, que tira casas, que afoga ruas e que alaga a gente, que amarga a gente, que afaga a gente que evita gente.

Confesso que saí dois dias depois da tragédia. Chovia. Aproveitei pra chorar.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Havia escrito um texto ótimo, mas a bosta da internet me cagou. Pra não me foder sozinho, o leitor ficará sem saber o que eu tinha pra dizer. HA-HA.

Saquarema

Uma noite de quarta me mata
E aos poucos, de louco, eu sorrio
Das falsas frases de amor de uma quarta
Que estão presas por um fio

À margem da lagoa, numa boa vendo o luar
A avistar as silhuetas que se iludem na sombra
Luzes se repetem, se refletem na água escura
À luz da lua, numa cidade litorânea

O som do quebrar de uma onda no mar
A lembrança alcança os ouvidos
Logo as frias noite e dia que jaziam na agonia
De um passado que não volta
À tona voltaram, cismaram de recomeçar

Deitados na calçada, acomodados, vendo o luar
Congeladas, silhuetas se iludiam além das sombras
Luzes se repetem, se refletem no brilho do mar
Num deslumbrar da madrugada em Saquarema

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A Despedida

Acordei tonto às seis e tanta de uma quarta-feira. Meu único porre na viagem toda, pra ser sincero e foi no dia de nossa volta. Fui ao banheiro dar uma mijada, passei na cozinha e bebi bons possíveis meio litro de guaraná e meio litro de água, mas ainda assim eu continuei um pouco tonto. Fui falar com o Blue para irmos à praia - lá pelas sete e meia, quando consegui me agüentar em pé numa boa - para, na volta, arrumarmos a casa e partirmos numa boa. Ele se relutou a acordar e falou pra chamá-lo às nove. Pois bem, eu já sabia que seria assim, então meio que não liguei e fui assim mesmo.
A praia nunca foi tão boa, a água nunca foi tão gostosa e o vento nunca foi tão cadenciado quanto nesta manhã, mas reconheço que esta era apenas minha consciência finalmente percebendo que esta seria minha última manhã em Saquarema neste fatídico mês de fevereiro. Enquanto vislumbrava o horizonte com um cigarro, acolhido ao colo dado pelo meu lábio inferior que constantemente recebia o carinho do abraço de meus indicador e polegar direitos, eu pensava nas nuvens que timidamente se afastavam do abraço dado entre o céu e o mar apenas para que eu pudesse ter em minha memória a foto perfeita da paisagem que iria assombrar meus sonos com saudades. Neste momento eu pude compreender a atenção que o universo dedicava a mim e então pude agradecer e desejar que todas as demais pessoas neste mundo pudessem compartilhar desta atenção, destes cuidados. Olhei para a areia e os tatuís faziam festa para o Sol da manhã, ignorando a maré que subia e os levava de quando em vez e pensei em voltar para a casa de Blue para começar a arrumar o quarto de hóspedes.
Aos poucos, Blue e Júlio César foram acordando e os trabalhos começaram. Não que eu tenha aversão ao trabalho braçal, mas nunca fui muito chegado a lavar louças com as mãos nuas, então esta foi uma tarefa de muito empenho, muita dificuldade pra mim. O fato de que não havia água na cozinha da casa foi só um obstáculo a mais, para valorizar mais minha vitória. Cheguei a enfrentar o que julgo ter sido o Moby Dick dos copos: era um copo de requeijão que carregava desenhos de uma animação da Disney, Pocahontas, que estava engordurado, submerso na pia entupida e carregava pedaços de macarrão em boa parte de sua constituição, além de uma encorpada e pegajosa camada de uma bebida barata em seu fundo. Admito que cheguei a ter uma moderada ânsia de vômito, mas a vitória era importante demais para sucumbir no meio do caminho. Por fim, terminei os copos e Blue me falou que um outro povo que a gente deveria ver estava na praia e meu trabalho estaria, por hora, interrompido. Salvo pelo gongo, como diriam algumas pessoas.
Voltando à praia, encontramos esse pessoal e entre eles estava Miguel, um guri que estava conosco até o dia anterior. Bom rapaz - meio seqüelado, como cada um de nós -, com uma acanhada paixão pela vida e olhos de quem a observa de longe, envergonhado. Isso me trazia certa identificação e me agradava. Já o conhecia de outros carnavais, como os demais daquele outro grupo, e me arrependo de algo que fiz sem querer, sem pensar; sem saber, pra ser mais exato. Não que ele estivesse no topo da minha “lista de pessoas que não gostaria de ferrar”, mas ferrá-lo foi extremamente desagradável e é motivo de arrependimento para mim até hoje. No lugar dele, sem dúvidas, não gostaria de mim, mas acho que isso faz dele mais evoluído que eu.
Sentei com o pessoal, mas não interagi muito. Distraí-me pela lembrança, pelo horizonte, pelo trago do cigarro e pelo brilho do Sol. Aqueles pores-do-sol que tive a honra de testemunhar foram os mais bonitos que já vi, quando vi o Sol se esconder ao longo das nuvens de fim de tarde, usando o céu como uma palheta de cores, pintando uma tela arco-íris para aqueles que doam seu tempo para vê-lo criar a mais profunda das artes, que sempre se reinventa, que se cria e se destrói todos os dias: toda aurora, todo crepúsculo, toda a vida. Entre tragos, ainda na praia com eles, balbuciava algo sobre a paisagem. A hora passaria e havíamos de nos despedir e voltar para casa, para terminar de fazer as malas e arrumar qualquer pendência.
Neste momento, o mais certo a se fazer é falar sobre Blue e Júlio César; ambos estudaram comigo, nos tempos de moço. Blue fazia o tipo que se encaixava em todo lugar, que não se incomodava com nada, que mal ligava pra nada. Eu poderia dizer que ele seria um Dean Moriarty com uma menor e não tão cega paixão pela vida, mas que ainda carregava o ímpeto de sua existência, o must-do do instinto, o inerte sentido da ação que jamais encontraria atrito que freasse sua investida. Júlio é um caso curioso, é o garoto da cúpula, a defesa perfeita: jamais se poria em posição vulnerável, mas não investe; é estacionário, ainda que ambicioso: apresenta superior desenvoltura em vida acadêmica, mas é tímido, tem um medo de pessoas que chega a ser maior que o meu. Tentava, com freqüência, ajudá-lo, mas ele nunca aceitou a tal ajuda. Ambos estavam inertes: um não parava por nada, outro não se mexia por nada; eram água e pedra em corredeiras. Deslizando por ambos, eu.
Júlio se pôs a lavar o resto da louça, eu lavei os banheiros e Blue deu uma arrumada na casa, até que a água da casa acabou e a louça ficou suja, por lavar. Dando uma volta no quintal, para pegar minha toalha, vi uma cagada no outro lado da casa que depois fiquei sabendo que era do Blue: a água na casa havia acabado há pouco, mas desde o dia anterior, já não havia mais água nos banheiros da casa. Por fim, decidimos que levaríamos a louça suja para o Rio, para a casa de Blue e assim foi feito. Com o desgaste, o pensar e o fazer perdemos o ônibus de uma e meia, indo pegar, então, o ônibus de duas e meia. Saímos um pouco mais cedo da casa e no ponto de ônibus vimos os outros rapazes e papeamos até a chegada de nosso querido e tão esperado transporte. Discutimos o fato de Freud ser superestimado e ainda assim ser referência nos estudos da neuroquímica, como vanguarda, e enfim chegou. Dormi a viagem inteira e ao chegar a Niterói, esperamos pelas barcas. Já nelas pensei na viagem, pensei no luar que caia na lagoa enquanto o céu se vestia com estrelas, ao passo que em terra firme as silhuetas se iludiam entre as sombras de uma deserta e escura rua sem iluminação; pensei no trovoar da ressaca do mar e no quebrar das ondas que se assemelhava ao dobrar de uma folha de papel ofício; no céu tingido de tons púrpuro, à medida que a noite invadia a cidade de Saquarema; na vista privilegiada que é dada àquele que senta na areia da Praia do Boqueirão, em Saquarema; quem senta nesta areia pode apreciar a vista olhando para qualquer direção. E, não com pesar, guardo esses dias na memória. Não com pesar.

O Casamento e A Infância I

Ouve-se o agudo soar de um sino e o fechar de uma porta: Dmitri chegou ao bar. O bar não estava exatamente cheio, notava-se os mesmos rostos de sempre ao redor das mesas, as mesmas caricatas faces do bêbado, do magrelo com a burlesca, o rapaz que dormia sobre a mesa e Luka, seu amigo caladão, estava ao balcão. Dmitri se sentou.
- É, Luka, as noites estão cada vez mais insuportáveis. EI! Garotão, Jack sem gelo, por favor.
- O que houve dessa vez? Cagaram no teu pau, de novo?
- Haha, antes fosse. Não estou com ninguém, agora, disso eu estou livre.
- Então o que diabos houve? – Perguntou Luka, enquanto bebia um bom gole de sua cerveja.
- Meus pais, meus velhos pais. Amam-se, mas não se agüentam. Eu já não agüento, mas acho que é mais difícil pra mim, já que tenho que agüentar ambos. Ah, obrigado, rapaz. – Dmitri dera uma bela golada em seu uísque - Jack, no entanto, me ajuda, mas acabaram as garrafas lá de casa. Eu havia parado de beber, lembra-se? – E Luka respondia afirmativamente com a cabeça, parando então para continuar bebendo – Parado de fumar também, mas nada dura pra sempre, como o casamento dos velhos. Falando nisso, eu bem preciso fumar agora mesm... O quê? Ambiente fechado? Sair pra fumar? Não, não. Não vale a pena, obrigado. Como ia dizendo, Luka, Vinha conversando com mamãe e tenho a impressão de que ela desmiolou de vez: agora diz que quer conhecer outros homens!
- Outros homens, você diz? – Luka termina sua cerveja e pede outra ao barman.
- Sim! Outros homens! Diz ela que não pretende trair meu pai, que é só pra fazê-lo pagar pelas companhias femininas que ele arranja por aí, mas eu não sei. Pra ser sincero, não queria nem saber. Ela sempre foi mais certinha, então eu já não sei o que pensar. Meu pai é um asno, desde sempre, e isso deixou mamãe meio maluca. Agora, veja você, mamãe acaba importunando meu pai, que se torna mais imbecil, e isso não para. Eu é que me fodo, pior é isso.
- Hmm...
- Hmm, o quê?
- Nada, deixe para lá.
- Fale, diabos!
- Nada, só me perguntava se você não estaria sendo meio egoísta em trazer o problema para si, só isso. – E novamente sua cerveja era atacada.
- Ué, mas se eu não pensar em mim, quem vai pensar? Eles? E se eu não pensar em mim, em quem vou pensar? Neles? Já era pra eles, admita. Demorei a admitir, mas já não há mais o que esconder de mim: o que eu não quero ver, a bebida me mostra. Falando nela: EI, garoto, me sirva mais um Jack, por favor. Enfim, olhe só para todos estes perdedores, aqui no bar: tiveram uma infância ferrada, como a minha, como a tua. Meus pais não conseguiram me ensinar muita coisa, mas graças a eles eu sei que casamento fode qualquer pessoa, inclusive qualquer criança.
- Cada um de nós tem queixas do passado e sabe lidar com cada um dos traumas. Alguns lidam melhor que outros, outros bebem, fumam, cheiram, matam... No fundo, o que importa é sobreviver, não?
- Luka, às vezes me surpreendo com você. Tá, talvez não, mas você fala certas coisas que têm sentido. Ah, obrigado. EI, eu pedi um duplo! Não pedi? Ah, então desculpe, tudo bem. Você me dá um duplo na próxima. Como ia dizendo, meu amigo, olhe para eles: você acha que aquela burlesca está com aquele magrelo por que motivo? Fatalmente, falta-lhe amor próprio. Teve uma infância triste, pois sua mãe a censurava: havia de fazer balé, pois era o destino que sua mãe não teve e que haveria de ser concretizado por sua filha. Não a deixava sair com as amigas, falar com quem quisesse: a pobre criança deu seu primeiro beijo com dezoito anos, penso eu.
- Ainda bem que você é um escritor, você tem uma imaginação e tanto...
- É, acho que sim, além do mais, sendo um escritor eu tenho carta branca para beber e esquecer meus traumas de infância.
- Que traumas de infância?
- Esqueça, Luka, esqueça. Vamos continuar a beber. Meu amigo, me sirva aquele duplo, agora...

O Casamento e A Infância II

Luka foge da chuva torrencial - que bruscamente encontra seu lugar em meio ao sórdido calor tropical da segunda cidade mais quente do mundo - à procura de um abrigo. Encontra um breve e pequeno teto que protege um ponto de ônibus e assim ele espera sua condução. Faz sinal, pois logo seu ônibus se aproxima, e embarca.
Ao encaminhar-se a um dos assentos, Luka vê Dmitri, um amigo de longa data que não vê há tempos, sentado, solitário.
- Olhando a chuva riscar a janela? Você já foi menos romântico.
- Luka! Não, eu só estava pensando: os anos estão passando rápido e eu não estou ficando mais novo, você sabe como é isso? Não, você não sabe, pois ainda é jovem; eu, por outro lado, estou envelhecendo rápido demais. Talvez seja a vida. Você envelhece por conta dos seus cigarros, da sua bebida, mas já aprendi a conviver com isso: o que mais me desgasta, mesmo, é a vida.
- Dmitri, mas já parei de fumar. Aliás, você também não tinha parado de fumar?
- Você já deveria saber que é mais fácil você parar de fumar do que eu. Enfim, a grande questão é que eu já não deveria mais estar sozinho, pois já não tenho saco de ficar conhecendo tantas pessoas, entende? Eu deveria aceitar que não conheci o par ideal e conviver com a melhor opção que eu posso manter. Não posso envelhecer sozinho, o que seria de mim? Aliás, o que pensariam de mim?
- É realmente mais importante pra você o que os outros pensam do que seu bem estar?
- Até parece que você não me conhece. Pra ser sincero, já nem consigo mais escrever! Esse tempo inconstante me mata: ao sol de cinqüenta graus, eu morro, praticamente! Fico prostrado em minha cama, com uma garrafa de cerveja molhando minha garganta incessantemente. Nos dias de chuva, fico hipnotizado pelo riscar da janela, observando a corrida entre as gotas, apostando na que chegaria primeiro na sacada. Talvez eu não esteja inspirado, é que eu sinto medo, sabe?
- Esse cara não parece você, eu vou descer aqui.
- Pare com isso! Sou humano, ainda que não pareça algumas vezes...
- Como quando você bebe?
- Isso!
- Mas você bebe o tempo todo...
- A questão é que eu estou envelhecendo e não posso deixar de lado uma necessidade fisiológica minha: deixar meu legado.
- Mas você já tem dois livros publicados, o que mais você quer deixar pra humanidade? Nunca imaginei que você quisesse ser tão presente.
- Um filho, Luka, um filho! Entende? Já era tempo de deixar uma criança nesse mundo pra carregar o fardo do meu sangue, como um bom Buendía, entende?
- Lá vem você com essa intertextualidade.
- Vá à merda! Estou falando sério, preciso deixar meu legado, desenvolver os traumas. Meus pais me cagaram para este mundo, então talvez seja hora de gerar outro ser vivo que possa ser cagado e que possa contribuir com seus traumas para a arte contemporânea, mas, claro, sem perder o charme de alguma escola literária passada. Barroco, de preferência. Barroco...
- Hmm, meu ponto é aqui, Dmitri. Até logo.
- Luka, não vá! Luka! Luka!
E, neste momento, o ônibus volta a andar, deixando Luka para trás e Dmitri a voltar a apostar em uma gota em particular...

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Difícil dizer...

Os limites da obsessão. Até onde é paixão, onde começa a dependência...
Há muitas formas de dependência...

Caixas de Cigarro

É difícil ter você longe de mim
Sinto falta de ter você em minhas mãos
Não, eu nunca disse que você é importante
Antes eu negava, até hoje eu nego

Ter você em meus lábios
Sabe os momentos de tensão?
Não sobreviveria sem você ao meu lado
Ou, pelo menos, nisso eu acreditava

Quantas noites eu passei acordado
Procurando você em tanta caixa de cigarro
Vazia?
Vazia?