sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Capítulo 01

                Um gosto amargo na boca. Era horrível lidar com o estômago contraído logo pela manhã. Os olhos pesados, doloridos, maltratados pelo sol que passava pelas persianas pela manhã – ou já seria tarde?, definitivamente tarde – da primeira manhã do ano. O réveillon sempre cobrava e cobrava caro. O esforço de levantar em manhãs como essas sempre levantava a dúvida – vale a pena, isso? Não que a resposta importasse, nunca importou. Cachorros velhos não aprendem truques novos.
                Acho que primeiros passos em casos assim têm de ser bruscos. O resto da bebida direto pra dentro, os dois pés no chão, superar o zumbido no ouvido, o que for – não se deixar impedir de começar o dia, o que, tratando-se de alguém assim, pode ser qualquer coisa.
                Acho que primeiros passos não deveriam ser tão gelados, não sei por que diabos esse piso continua frio desse jeito em pleno verão. Mas é como dizem – um passo atrás do outro. E outro. E outro... E BOSTA EU TENHO QUE VOMITAR.
                Corro ao banheiro, levanto a tábua e meio que não deu tempo. É sempre uma questão de sorte – filósofos, conquistadores baratos e autores de livros de autoajuda concordariam que é um jogo de números. Às vezes a gente acerta, às vezes a tábua paga o pato. E junto pagam o piso e boa parte do último rolo de papel higiênico da casa. Mas ao menos me sinto melhor, todo mundo que acorda bêbado deveria ao menos tentar vomitar pela manhã. Dentro do vaso, de preferência.
                Macarrão. Queijo. Pedaços de bife. Na verdade, tiro duas conclusões desses pedaços de bife na parede – eu deveria passar um pouco mais dessa carne tão vermelha e, sem dúvidas, mastigar melhor minha comida. Mas é tão bom quando a bebedeira passa e a gente fica sóbrio e exausto e consegue levar o dia até a próxima soneca da tarde. Boa coisa que não trabalho pelos próximos dez dias.
                Acendo meu último cigarro logo depois de limpar a boca com a manga da camiseta, visto as calças de ontem, ponho um chinelo e ando até um posto de gasolina a dois quarteirões de casa. Os quatro lances da escadaria do prédio meio que já me matam de cara, mas o resto da caminhada é mais agradável, com todo aquele vento fresco que corta o abafado de uma noite muito mal dormida. Primeiro de Janeiro e as ruas estão completamente vazias e, para ser bem sincero – cruel de tão sincero, mortalmente sincero – um certo medo infantil me invade ao cogitar que o tal posto, como todo o resto do comércio, estivesse fechado por conta do feriado. A menos de cinquenta metros de lá, ainda não sei dizer. Atravesso outra rua. Tomara. Espera. Foi, tá aberto. É isso. Só mais uma rua a atravessar e pronto. Mas como que uma farmácia pode estar fechada hoje? Poderia ser Natal, poderia ser aniversário de alguém, poderia ser qualquer coisa – é uma farmácia e essa porra não pode fechar. Enfim, me dá dois Marlboros. Caixa. Não, desculpa, quero do branco. Obrigado a você e feliz ano novo.
                É isso – e, sim, quando fico contente eu repito esse tipo de frase. É isso mesmo.  Mas posso assegurar que a melhor parte de voltar para casa é que demora muito menos que ir de casa até, bem, até onde for. É um destino certo, nada pode dar errado e sua casa estará sempre lá, é só não parar para filho da puta algum. Apesar de ser um movimento mais complicado, até subir as escadas voltando vale mais a pena. E quanto mais perto de chegar, mais rápido a gente tenta ir. Abro a porta de casa para receber meu cachorro – uma coisinha minúscula, peluda e super carente – com um pouco do meu vômito escorrendo dos pelos do seu queixo. Acendo um cigarro, vou à cozinha e pego uma toalha dessas e molho um pouco para lavá-lo. O garoto é minha vida, lembro-me de pensar. Um bom beijo nele, uma garrafa de cerveja e já posso voltar para a cama. Até que para um primeiro dia do ano as coisas correram mais ou menos bem. EXCETO QUE QUEIMEI MEU LENÇOL COM PONTA DE CIGARRO DE NOVO, PUTA QUE O PARIU, OUTRO BURACO.

                Mas a gente sabe que cachorros velhos não aprendem truques novos.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Caco

   Uma noite como outra qualquer, daquelas nas quais se bebe um copo de uísque e entre um piscar e outro mais longos se nota um ou outro alguém que passa pela escura e cinza rua, cujas árvores se expressam opacas em gradiente do cinza ao verde. Os postes não iluminam mais que a lua, com suas luzes âmbar quase nuas em seus brilhos quase turvos, frágeis como os olhos aguados da mulher aos prantos no iphone capa branca, lábios róseos e unhas roídas. Uma entre várias, infinitas. Várias cadeiras vazias, iguais, singulares em plural, dando vezes a ocupadas tão logo as ruas cheias dão espaço às vazias.    
   Poças dão vez às gotas que não tão poucas se formam rios – as ruas sujas desaparecem conforme o ar se torna frio – e os bares enchem seguindo os copos que pouco a pouco se esvaziam.
   
   A moça loira de rosto inchado e olhos vermelhos olhou pro lado e viu um espelho no vidro do carro – tão logo pôde se distraiu: um copo a mais de uísque, por favor.

   Nem os copos são únicos.
   Nem ruas, nem chuvas, nem brilhos quase turvos de postes de linhas duras em cenários tristes, escuros.
   Quando os copos caem, tornam-se singulares e plurais – todo caco é copo.
   Pessoas também.

terça-feira, 22 de março de 2016

O sanduíche mais simples

Não precisava de muito para ser feliz. Acordava metade de seus dias na casa dela, na cama dela – na maioria de ressaca – e olhava aquele rosto frágil e belo e adormecido em seu ombro direito, aqueles longos e cheios cabelos negros espalhando-se de seu pescoço à ponta semi-rija de seu pênis caído entre suas pernas. Aquelas pernas trançavam as suas e aqueles braços lhe tomavam posse. A respiração era aquela ofegante daqueles de sono irrequieto e o quarto estava sempre escuro. Por muito tempo a insônia lhe abandonou, mas das últimas vezes lhe fez companhia. O aparelho condicionador voltara a lhe incomodar o nariz ao acordar e já não era a mesma coisa acordar às quatro naquele quarto.
Levantava e desligava o aparelho e abria as cortinas. Lembrava-se de sua nudez, mas àquela hora não se faria incômodo. Abria as janelas e olhava o céu púrpuro incandescido pela iluminação dos diversos prédios vizinhos, criando o contraste do neon contra o escuro. Ventava, mas era tão gostoso. Buscou na mesa de cabeceira seu Camel e seu isqueiro de prata, ambos pela metade, apoiou seus cotovelos no parapeito e acendeu. Fechou os olhos e sentiu o primeiro trago do dia preencher cada alvéolo em seus pulmões. Abriu os olhos e esfregou a remela formada por uma boa noite de sono – e dessa vez nem acordara tão enjoado, só bebera quatro doses na noite anterior. Olhou para sua máquina de escrever portátil e sentiu vergonha de si mesmo. Sempre que dormia fora, carregava-a e havia meses que não escrevia nada. Estava feliz. Diziam que por isso era incapaz de escrever. Jogou a guimba pela janela e viu-a espatifar-se de um canto a outro do pequeno pátio interno do condomínio, o brilho do fogo ainda desperto no cigarro ziguezagueando entre os quiques, até finalmente apagar-se.
Afastou-se da janela e tateou o chão da sala – esta mal iluminada – para encontrar sua calça jogada, então levantando e vestindo-a. Faria o café, não fosse a preguiça. Droga!, por que nâo fazer o café? Ela acorda às oito, mas é só fazer outro depois, de novo. Mas é uma pena que nesta casa não haja nenhuma bebida – pensou. – Realmente me faz falta em momentos como esse. Vestiu sua camiseta e desceu, levando sua chave da casa dela, para buscar alguma bebida na rua. A essa hora nenhum dos poucos lugares abertos vendia bebida, exceto por – fora do cardápio – uma lanchonete de esquina de uma rua paralela. É uma caminhada rápida, pensou.
Na metade do caminho para o fim da rua, cruzou com um morador de rua corpulento, bem idoso, maltrapilho como de costume, porém era notável como suas roupas conservavam, senão no aspecto, a aparência de terem sido caras alguma vez há muitos anos.
- Olá, meu jovem, tudo bem com o senhor? Voltando da igreja? – perguntou  o morador de rua.
- Boa noite. Não, não, estou indo comprar algo para beber. O senhor me acompanha?
- Não bebo há muitos anos, meu filho – mentiu, pois seu hálito entregava a fome e a embriaguez disfarçada na voz. – Mas devo lhe pedir ajuda. Estou muito cansado, durmo na rua já há três semanas e meus pés já estão muito cansados. Será que o senhor não poderia me pagar uma diária em algum hotel da região? Uma noite no quarto mais simples e é tudo que lhe peço. Estou muito cansado – disse entre tosses.
- Não sei, não trouxe muito dinheiro. Não posso lhe pagar algo para comer?
- Não me ajuda como uma noite em uma cama, mas pode ser. Podemos ir a uma lanchonete lá na frente? Peço o sanduíche mais barato, o mais simples, e isso já me seria ótimo – sua voz era calma, grave e pausada, digna de um senhor de idade.
- Pode pedir mais que isso e eu já ia àquela lanchonete. Beba comigo ao chegar lá.
- Mas lá vende bebida? Alcoólica, quero dizer? – perguntou surpreso.
- Sim, mas tratemos de andar.
E caminharam pela rua quase deserta, cheia de porteiros de hotel, casais turistas – tanto os apaixonados, como os que tentavam salvar suas relações frágeis e antigas – e os poucos trôpegos ébrios naturais das manhãs de quarta-feira.
Enfim chegaram, a passos lentos de quatro pés inchados, à lanchonete. O velho fez seu pedido – o mais simples, como prometera – e o rapaz pediu duas doses de conhaque barato, a única bebida que a lanchonete dispusera a vender clandestinamente. Bebemos e Dmitri pediu mais duas doses para viagem, pagando logo em seguida e deixando o velho a lhe agradecer e a comer seu sanduíche.
Voltou ao apartamento sem fazer barulho, truque que aprendera em seus anos de adolescente chegando bêbado na casa de seus pais pela madrugada. Pôs água a ferver e bebeu meia dose da bebida vagabunda enquanto isso. Ao fim do processo, despejou a água no pó e fez então o café a beber. Forte, pensou, como sempre. Mas faltava o conhaque – e logo o misturou. Após duas xícaras, ligou o abajur, encontrou seu livro debaixo da mesa de centro e começou a ler. Poucos impressionaram-no tanto como Huxley e decerto mesmo Huxley seria incapaz de impressioná-lo novamente após A Ilha. Com o tempo viria a ter sono e nesses momentos levantar e fumar na janela seria a solução.
Viu o céu clarear, o segundo copo esvaziar e sua mulher despertar. Primeiro os olhos, depois a coluna e num rápido movimento os braços e as pernas. Tremiam conforme esticavam-se e um sorriso formava-se conforme ganhava-se consciência. Insônia de novo, bebê, perguntou. Mas claro que sim, Dmitri respondeu. Você não fumou na janela, fumou? A casa está fedendo! Dmitri então fechou seu livro e caminhou até a cama. Beijou-a. Prometo compensar, disse enquanto tirava a camiseta. Era engraçado, pensava, pois momentos como esse, em dias como esse, nos quais o céu ainda brilhava magenta, lembrava-se de Um País Estranho de Hemingway, lembrava-se de como entrava em qualquer outro lugar ao entrar nela. Não tinham mais um canto para si, tinham o mundo inteiro e nada mais, não havia mais ninguém. É muito grande pra mim, ela dizia, e de fato era o que ele sentia também. Ao terminar, o arfar diminuía e o céu perdia o brilho do amanhecer e tomava o opaco tom azulado da manhã já formada. Eu faço o café, disse ele. Para variar, zombou Amélie.
Já quase atrasado, tomou seu café e seu banho, deixando Amélie para se arrumar e despedindo-se com um beijo. Da casa dela a seu trabalho não eram mais de vinte minutos a caminhar e decidiu ir. Trabalhava em uma agência de publicidade no topo de um prédio comercial na zona sul do Rio de Janeiro. Era mais uma manhã difícil, como outra qualquer. Principalmente ao lembrar que não era feliz. Não com seu trabalho, não com sua vida, muito menos com seus vícios. Um dia de trabalho não era o suficiente para levar paz a sua mente.
Às sete saiu e foi a um bar encontrar-se com alguns amigos. Eram como ele, pensou. Todos tinham olhares vazios cheios de brilho, típicos de quem se rende à vileza do álcool e das drogas. Dmitri lembrava-se das noites de recuperação nas reuniões em que frequentava, lembrava-se da força que tinha, da serenidade que não tinha e da sabedoria que lhe escapava. Pensou no mundo doente em que habitava, no qual as pessoas tinham vergonha de viver e cujo esporte era o de disfarçar a repulsa à vida com celebrações.
Um rapaz disse uma vez que Dmitri não conseguia escrever justamente por estar feliz. Para que fosse capaz de escrever, era necessário estar triste e magoado, humilhado, derrotado pelo dia-a-dia que feroz consome toda fagulha da energia que aqueles que pensam demais são capazes de criar.
Naquela noite, lá pelas onze, o bar vazio e os copos cheios – os copos daqueles que ficam, daqueles sem brilho – o céu sem estrelas como só a cidade grande de prédios de lâmpadas amarelas que nunca apagam, nem mesmo às cinco da manhã, é capaz de convidar, naquela noite, naquela escuridão, Dmitri lembrou-se que não precisava de muito para ser feliz.

Então despediu-se dos demais, pediu um táxi para voltar para sua casa e pôs-se a escrever.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Cigarros, um beijo e Nadia

Viria então a conhecê-la. Parecia bonita nas fotos, bem como falavam sobre ela. Olhos castanhos, claros, expressivos, emoldurando um rosto delicado, de maçãs fortes e boca e nariz finos. Seu rosto inteiro brilhava e dançava com seu sorriso. Seu sorriso arrancava um sorriso dele. Ele não costumava mostrar os dentes, não assim tão fácil – no entanto sorria com ela a cada sorriso fácil que ela dava.
Ela não gostava de cigarros, ele fumava. E não fumou os cigarros da espera, antes de encontrá-la.
Planejavam ir ao cinema, mas ela não gostava de planos. O improviso lhe vestia melhor. A sessão para a qual haviam acordado em ir havia esgotado e teriam de improvisar. Ele ganhava a vida com planejamento – gostava disso.
Dmitri e Nadia decidiram vagar pelo Rio de Janeiro à procura de algo melhor – no caso, andar pela Bartolomeu Mitre, procurando um lugar para comer. Nadia contou sobre seu passado, sobre seus relacionamentos antigos, pouco a pouco mostrando o porquê de seu comportamento arredio. Dmitri gostava de gatos.
Encontraram uma hamburgueria em um shopping no Leblon e lá ficaram e discutiram sobre muito até ficarem cansados e com sono, após comerem um par de hambúrgueres. Ele acompanhá-la-ia até em casa, na Gávea.
No caminho falaram sobre a sublimidade do sofrimento, de seus pais, da vida, dos filmes, dos livros e em uma esquina aconteceu. Dmitri sabia que deveria esperar, Nadia sentia que não deveria fazê-lo. Ela não estava pronta para já se envolver fisicamente com outra pessoa e ele sabia. Os dois estavam cometendo um erro em apressar as coisas. Os dois sabiam. Aconteceu.
Foi apenas um beijo. Nadia puxou Dmitri da esquina – ficaram de frente. Ele pôs seus braços à cintura dela. Nadia deu dois passos ao encontro de Dmitri que, por sua vez, deu outro passo. Quatro olhos tremiam. Quatro olhos castanho-claros tremiam e as bocas inseguras se aproximaram e o segundo final que as separava durou uma noite inteira. Quando colaram, assim o fizeram com culpa.
Nadia era arisca e arredia e Dmitri, mesmo tendo experiência com gatos, foi incapaz de não se deixar arranhar. Parecia inevitável que este gato fugisse.
Tentavam fingir que isto não mudaria nada, mas certamente mudou. Deixou-a em casa e despediu-se sem um beijo, tentando consertar as coisas.

Esperando por um táxi que o levaria para casa, Dmitri finalmente fumou.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Catarina e os maços de coração

                A dois cigarros de finalmente entender o que havia dado de errado entre Catarina e ele, decidiu parar de fumar. A vida de dúvidas era mais fácil e enquanto fumava a morte tornava-se mais certa. Bebeu mais um gole de uísque e pôs-se a ruborizar.
                Dois dedos de sua mão direita massageavam sua têmpora e sua mão esquerda levava o copo. Mais poucos passos e atravessaria o corredor estreito e longo de carpete vermelho com detalhes de dourado, aparador de madeira com abajur de madeira escura e luz quente, quadro de avó que nunca conhecera e portas de quarto que nunca abrira. Mais alguns poucos passos e chegaria à poltrona na qual pegaria no sono até a manhã seguinte, quando seria acompanhado por dores de cabeça, velhas amigas.
                Chegara ao sofá café de couro e decidira pausar por lá. Catarina nunca fora complicada, pensara. Não fora complexa, não dava trabalho, entendia meus erros, conhecia meus vícios e perdoava meus pecados. Foi perfeita, Catarina. Foi, não deixou de ser mesmo ao me abandonar.
                O silêncio era a casa. Todo o resto rugia e quebrava como ondas, como revolta, como mar. Dmitri era fã de touradas e morria por elas. Sempre soube que nem todas as noites eram do toureiro. Torcia pelas noites do touro. Agora que a noite chegou, não sabia se poderia aguentá-la.
                Com esforço arrastou-se pelo sofá até chegar a seu braço, derramando goles pelo tapete azul cruzou o caminho entre o sofá e a poltrona engatinhando, protegendo-se dos perigos que zuniam na zona de guerra que era o campo de memórias que nutria no cômodo.
                Mais uma vez bêbado. Era um bêbado, Dmitri. Catarina soube e Dmitri soube disso. Agora sentado na poltrona café de couro, bebeu o resto de seu uísque e descansou o copo ao chão, quebrando-o com a queda. Alcançou um cigarro de seu maço e acendeu-o. Estava a um cigarro de entender o que havia de errado com ele.
                E adormeceu. O cigarro se desfazia entre seus dedos até queimá-los, acordando-o. Bêbado, tomou a decisão que nunca fora capaz de tomar enquanto sóbrio. Morto, tomou a decisão que não tomara enquanto vivo.
                Tirou o maço de cigarros do bolso da camisa para dar mais espaço ao coração.
                E morreu.

                Até a manhã seguinte, quando viveu ao acordar. Viveu o luto de sua própria morte até morrer novamente na noite seguinte. E assim tem feito desde que Catarina se foi.

domingo, 2 de junho de 2013

Despedida às seis da manhã

                E então a olhou. Distanciou seu rosto do dela e abriu seus olhos e olhou-a como nunca antes. Não sabia se voltaria a ver aqueles olhos negros tão vazios do vazio que se vê nos demais olhos, do vazio que via em seu próprio olho.
Amava-a.
Do momento em que a conheceu, soube, mas nunca soubera se voltaria a vê-la. Naquele momento não seria diferente. Aquele momento era apenas o nascer do cielo rojo, o nascer do sol, era um beijo de despedida no portão sobre aquele descampado, tudo aquilo que ele não conhecia e que ela tampouco, todo aquele lugar que era novo para ambos – tanto o descampado quanto o amor – toda aquela matiz fulgurante, aquele inferno vermelho ao horizonte dando vez ao rosa quente e terno rodeando o sol e que levava a um céu azul claro sem nuvens lá no alto e tudo isso, todas essas cores desconcertavam os dois. Beijaram-se novamente e foi às seis da manhã e não teria como ter sido em outra hora, não “era” algo que acontecia às seis – “foi”, aliás, com um devido maiúsculo, “Foi”.
Disseram adeus e declararam outra vez seus votos mútuos de amor, selando-os com um beijo. Ele deu um passo para trás, deu um passo atrás do outro e não perdeu-a de vista, acendendo um cigarro enquanto distanciava-se sorrindo.
Quando ela não era mais que um ponto distante para seus olhos, pôde chorar sem incomodar-se em ser notado por ela. Não queria que ela pensasse que ele duvidaria se seria ela, não, jamais. Não havia dúvida. Nunca houve. Só é difícil saber se seremos para sempre os mesmos. Provavelmente a veria de novo, mas já não seria ele.
Fazia frio às seis da manhã, ambos longe de casa. Estiveram tão perto de casa quando a meia-noite cedeu. Talvez as cobertas fossem suficientes para acobertar a distância.

Talvez para Dmitri e Catarina o céu às seis da manhã de domingo fosse o suficiente.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Insônia


Enquanto a noite dorme, eu sonho
Só no sonho o sono que sonho adormece a noite comigo

Enquanto a noite queima, eu águo
Verter, em mãos, delírios e ver – ter – irmãos de lírios

Enquanto a noite acorda, eu espero
Elo tenso pela fragilidade atada tem sua frágil idade delatada

Enquanto a noite dança, eu sinto
A noite, me abraçar, e a noite me abraçar

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

As Camas e Os Sonhos


                Agarrou seu travesseiro. Pensou em abrir os olhos, talvez tenha pensado, mas não abriu. Não sabia exatamente em que cama estava, mas em seu âmago fazia ideia. No fundo de si, em seu peito soube e enfiou o rosto em seu travesseiro para esconder-se da verdade iminente. Sentiu-se observado. Estivera sendo observado desde muito antes e fora isso que o fizera acordar. Olhos quentes, coração quente, membros esquentando e envolvendo seu corpo, tomando seu peito e abraçando-o quente contra sua vontade fria. Virou para reconhecer os olhos que queimavam, donos dos braços que cercavam, das pernas que aninhavam e do que havia entre elas que o aprisionava. Ainda de olhos fechados, tateou o rosto dela com o seu, suas costas com suas mãos, suas coxas com suas mãos, seu rosto novamente e abriu os olhos. Seus olhos castanho claros viram os negros de Carmem.
                Dmitri aos poucos lembrava-se da noite anterior, de como Carmem aparecera em sua casa pouco antes das duas da manhã, de como ela esteve, bêbada e rancorosa e claramente a fim de arrepender-se por algo que não havia feito ainda. De como levantara-se de sua poltrona contra a sua vontade, deixando sua cerveja pela metade na mesa de centro, olhara para a janela e vira-a molhada e o chuviscar pesado por trás dela, para então caminhar até a porta e receber uma mulher sinuosa com quadris sinuosos, cabelos negros encharcados escorridos, rosto encharcado e escorrido e quase sem expressão senão a de súplica calada que pedia desnecessariamente urgente um abrigo, não da chuva, mas da vida, de sua casa, de tudo. De Luka.
                Acendeu seu cigarro e virou o rosto, não queria confrontar o rosto que jazia no que fora sua cama e agora era um túmulo. O que Luka pensaria? Amizade de anos – eram irmãos. Não desses de sangue, nem do tipo que se escolhe, mas aqueles dos quais não se pode escolher se é irmão, ou não – apenas se pode ser. Agora... Traíra Luka. E agora?
                Resolveu continuar de costas para Carmem e fechar os olhos. Cenhos franzidos, tentou repentina e gradativamente voltar a dormir. Pensamentos turbulentos, memórias recentes carregadas de sentimentos invadiram-no e reviraram-no.
                Por fim resolveu abrir os olhos novamente. Acordara sozinho, desta vez, num quarto diferente: o seu. Confuso, aos poucos tomou a noção de tempo que se perde quando se adormece e percebeu que este fora apenas um sonho. Não, não fora um sonho, aliás, apenas um sonho. Fora uma lembrança – a lembrança de sua primeira noite com Carmem.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Conversa de Lencóis I (Interlúdio)


- Eu bebi uma cerveja com ele. – Disse Carmem, cobrindo-se. – Mas foi só uma cerveja. Juro.
                - E daí? – Respondeu Luka, acendendo seu cigarro. Era um cigarro compreensível, aquele depois da transa. Ainda assim, Luka agora fumava muito mais do que já fumou ao longo de sua vida.
                - E daí nada. Achei que você fosse querer saber. Eu iria querer.
                - Por que gostaria de saber? O que há de especial nisso? Houve algo de especial nisso?
                - Primeiro que eu não gostaria de saber: iria querer saber, mas a muito contragosto e até bem relutante, mas iria querer, sim. Segundo que você sabe o que Dmitri quer de mim e suponho que não esteja confortável com isso.
                - Por que não estaria? Todo homem tem o direito de achar o que quiser, querer o que quiser. Ele está no direito dele em querer ter você e somos amigos. Respeito isso dele e sei que não é pessoal. Se você me trair com ele, a culpa será toda tua. Só tua.
                - Mas como assim? – Disse Carmem, cobrindo-se mais, além dos ombros, expondo apenas o rosto de pescoço coberto, os cabelo longos ruivos e macios e os dedos que seguravam o lençol.
                - Mas como assim que você está comigo. Você. Só você. Não é ele que está e se algo acontecer, terá sido falha tua. – E então Luka bateu as cinzas de seu cigarro no cinzeiro da cabeceira da cama, espreguiçando-se logo em seguida – Mas isso não importa, você não faria nada disso, faria?
                - Não faria...
                - Não?
                - Não, não faria... Não faria.
                - Tudo bem. Não faria. Sei que não faria. Me passa outro Lucky?
                - Claro. – pegando o maço e dando a Luka – Mas, Luka, me fala o que você foi fazer na quinta passada. Acordei no meio da noite sem você, uma folha queimada em cima da mesa, uma rasgada, presa na máquina de escrev...
                - Olivetti. Chama-se Olivetti. O-L-I-V...
                - Tá bem, tá bem. Uma folha rasgada presa à Olivetti, uma garrafa de uísque vazia ao chão, enfim, você longe. Você longe, o sofá vazio, minha cama vazia, minhas pernas vazias, meus braços vazios, tão frios, estava frio, tão frio e você deixou a janela aberta. Levantei para fechar a janela e pensei ter visto você equilibrado no parapeito da ponte dos mendigos, mas é loucura minha, não é? Vc não tem motivos pra pular, claro.
                - Claro. Loucura sua. Se eu tivesse pulado, não estaríamos conversando sobre você pensar ter me visto pulando de algum lugar.
                - Ai, Luka! Luka, eu fiquei tão preocupada! Nem dormi até você voltar! Bêbado, fedendo a Bourbon e a cigarros, mas vivo e em casa e comigo! Não sei onde estive com a cabeça ao pensar... Aliás, não, não pensei em nada. Vem comigo, me abraça. Me abraça e pela manhã você escreve sobre mim, sobre o quarto creme de luzes fracas amareladas e lençóis de cetim branco, sobre a cama circular, sobre meu beijo, sobre mim... Sobre nós dois.
                - Carmem – Luka estava atônito com o turbilhão que fora sua garota neste momento e em quanto ela deveria amá-lo para exibir uma paixão torrencial desta forma –, mas é claro que eu escreveria sobre nossa noite. Essa obra eu vou chamar de Gripe, pra fazer jus à gripe que peguei na quinta-feira.

sábado, 19 de janeiro de 2013

A Vista e As Surpresas


                - Tenho uma cerveja, quer? – disse de cenhos franzidos, virando o rosto para não olhar para ela. – Não é nenhum dos teus vinhos chiques, mas quebra um galho.
                Ele perguntou isso já sabendo que ela aceitaria a cerveja, nada poderia dar errado neste momento, fora tudo longa, fria, minuciosa e demoradamente calculado segundos antes. O tom, o jeito, o desinteresse, tudo falso, tudo ele, tudo do que ela precisa, tudo do que ela sentia falta em Luka, tudo o que ela não via desde que o conhecera, naquele Novembro chuvoso. Dias quentes de noites úmidas e abafadas, afobadas para cada pessoa naquela cidadezinha chamada Rio de Janeiro, uma pobre cidade grande que de tão longe parecia uma ilha.
                O terraço era o ambiente perfeito, aquele prédio era perfeitamente alto, as luzes perfeitamente amarelas e todo aquele mar de luzes acesas de todos os prédios menores, todos os postes nas ruas, sinais vermelhos, bares abertos, hospitais acesos com gente apagada, sinais verdes e carros parados, boates apagadas com gente acesa, mar de pessoas atravessando sinais amarelos e a noite começava nas onze da noite da zona sul do Rio. Essa era a vista que Dmitri e Carmem tinham e essa vista perturbadora e cativante seria capaz de criar o momento perfeito para que Dmitri pudesse conquistá-la. A véspera de Natal também dava a condição ideal para isso. Era só esperar a resposta – o álcool faria o resto.
                Dmitri tinha “quando”, “como”, “onde” e “porque” para fazer aquele “que” tão esperado com Carmem e agora...
                - Não, obrigado. Vc sabe que eu não bebo. – ...ela respondia.