quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A Despedida

Acordei tonto às seis e tanta de uma quarta-feira. Meu único porre na viagem toda, pra ser sincero e foi no dia de nossa volta. Fui ao banheiro dar uma mijada, passei na cozinha e bebi bons possíveis meio litro de guaraná e meio litro de água, mas ainda assim eu continuei um pouco tonto. Fui falar com o Blue para irmos à praia - lá pelas sete e meia, quando consegui me agüentar em pé numa boa - para, na volta, arrumarmos a casa e partirmos numa boa. Ele se relutou a acordar e falou pra chamá-lo às nove. Pois bem, eu já sabia que seria assim, então meio que não liguei e fui assim mesmo.
A praia nunca foi tão boa, a água nunca foi tão gostosa e o vento nunca foi tão cadenciado quanto nesta manhã, mas reconheço que esta era apenas minha consciência finalmente percebendo que esta seria minha última manhã em Saquarema neste fatídico mês de fevereiro. Enquanto vislumbrava o horizonte com um cigarro, acolhido ao colo dado pelo meu lábio inferior que constantemente recebia o carinho do abraço de meus indicador e polegar direitos, eu pensava nas nuvens que timidamente se afastavam do abraço dado entre o céu e o mar apenas para que eu pudesse ter em minha memória a foto perfeita da paisagem que iria assombrar meus sonos com saudades. Neste momento eu pude compreender a atenção que o universo dedicava a mim e então pude agradecer e desejar que todas as demais pessoas neste mundo pudessem compartilhar desta atenção, destes cuidados. Olhei para a areia e os tatuís faziam festa para o Sol da manhã, ignorando a maré que subia e os levava de quando em vez e pensei em voltar para a casa de Blue para começar a arrumar o quarto de hóspedes.
Aos poucos, Blue e Júlio César foram acordando e os trabalhos começaram. Não que eu tenha aversão ao trabalho braçal, mas nunca fui muito chegado a lavar louças com as mãos nuas, então esta foi uma tarefa de muito empenho, muita dificuldade pra mim. O fato de que não havia água na cozinha da casa foi só um obstáculo a mais, para valorizar mais minha vitória. Cheguei a enfrentar o que julgo ter sido o Moby Dick dos copos: era um copo de requeijão que carregava desenhos de uma animação da Disney, Pocahontas, que estava engordurado, submerso na pia entupida e carregava pedaços de macarrão em boa parte de sua constituição, além de uma encorpada e pegajosa camada de uma bebida barata em seu fundo. Admito que cheguei a ter uma moderada ânsia de vômito, mas a vitória era importante demais para sucumbir no meio do caminho. Por fim, terminei os copos e Blue me falou que um outro povo que a gente deveria ver estava na praia e meu trabalho estaria, por hora, interrompido. Salvo pelo gongo, como diriam algumas pessoas.
Voltando à praia, encontramos esse pessoal e entre eles estava Miguel, um guri que estava conosco até o dia anterior. Bom rapaz - meio seqüelado, como cada um de nós -, com uma acanhada paixão pela vida e olhos de quem a observa de longe, envergonhado. Isso me trazia certa identificação e me agradava. Já o conhecia de outros carnavais, como os demais daquele outro grupo, e me arrependo de algo que fiz sem querer, sem pensar; sem saber, pra ser mais exato. Não que ele estivesse no topo da minha “lista de pessoas que não gostaria de ferrar”, mas ferrá-lo foi extremamente desagradável e é motivo de arrependimento para mim até hoje. No lugar dele, sem dúvidas, não gostaria de mim, mas acho que isso faz dele mais evoluído que eu.
Sentei com o pessoal, mas não interagi muito. Distraí-me pela lembrança, pelo horizonte, pelo trago do cigarro e pelo brilho do Sol. Aqueles pores-do-sol que tive a honra de testemunhar foram os mais bonitos que já vi, quando vi o Sol se esconder ao longo das nuvens de fim de tarde, usando o céu como uma palheta de cores, pintando uma tela arco-íris para aqueles que doam seu tempo para vê-lo criar a mais profunda das artes, que sempre se reinventa, que se cria e se destrói todos os dias: toda aurora, todo crepúsculo, toda a vida. Entre tragos, ainda na praia com eles, balbuciava algo sobre a paisagem. A hora passaria e havíamos de nos despedir e voltar para casa, para terminar de fazer as malas e arrumar qualquer pendência.
Neste momento, o mais certo a se fazer é falar sobre Blue e Júlio César; ambos estudaram comigo, nos tempos de moço. Blue fazia o tipo que se encaixava em todo lugar, que não se incomodava com nada, que mal ligava pra nada. Eu poderia dizer que ele seria um Dean Moriarty com uma menor e não tão cega paixão pela vida, mas que ainda carregava o ímpeto de sua existência, o must-do do instinto, o inerte sentido da ação que jamais encontraria atrito que freasse sua investida. Júlio é um caso curioso, é o garoto da cúpula, a defesa perfeita: jamais se poria em posição vulnerável, mas não investe; é estacionário, ainda que ambicioso: apresenta superior desenvoltura em vida acadêmica, mas é tímido, tem um medo de pessoas que chega a ser maior que o meu. Tentava, com freqüência, ajudá-lo, mas ele nunca aceitou a tal ajuda. Ambos estavam inertes: um não parava por nada, outro não se mexia por nada; eram água e pedra em corredeiras. Deslizando por ambos, eu.
Júlio se pôs a lavar o resto da louça, eu lavei os banheiros e Blue deu uma arrumada na casa, até que a água da casa acabou e a louça ficou suja, por lavar. Dando uma volta no quintal, para pegar minha toalha, vi uma cagada no outro lado da casa que depois fiquei sabendo que era do Blue: a água na casa havia acabado há pouco, mas desde o dia anterior, já não havia mais água nos banheiros da casa. Por fim, decidimos que levaríamos a louça suja para o Rio, para a casa de Blue e assim foi feito. Com o desgaste, o pensar e o fazer perdemos o ônibus de uma e meia, indo pegar, então, o ônibus de duas e meia. Saímos um pouco mais cedo da casa e no ponto de ônibus vimos os outros rapazes e papeamos até a chegada de nosso querido e tão esperado transporte. Discutimos o fato de Freud ser superestimado e ainda assim ser referência nos estudos da neuroquímica, como vanguarda, e enfim chegou. Dormi a viagem inteira e ao chegar a Niterói, esperamos pelas barcas. Já nelas pensei na viagem, pensei no luar que caia na lagoa enquanto o céu se vestia com estrelas, ao passo que em terra firme as silhuetas se iludiam entre as sombras de uma deserta e escura rua sem iluminação; pensei no trovoar da ressaca do mar e no quebrar das ondas que se assemelhava ao dobrar de uma folha de papel ofício; no céu tingido de tons púrpuro, à medida que a noite invadia a cidade de Saquarema; na vista privilegiada que é dada àquele que senta na areia da Praia do Boqueirão, em Saquarema; quem senta nesta areia pode apreciar a vista olhando para qualquer direção. E, não com pesar, guardo esses dias na memória. Não com pesar.

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