quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Parapeitos e Ruínas


                Tec tec. Tec tec tec etec tectetec tectetetec tetec tec tec tectetectetectetetec tetetetetetetetetetec. Tec… Tec… Tec tec tectetetectetec tec tetec tec. Tec tetectetectetetecetetetetetetetectetec – MERDA! Merda, merda, merda! Não era nada disso! Nada disso!
                O estampido seco, forte e bruto na mesa não foi tão alto, mas foi tão agressivo que quase acordou Carmem. Esfregara os olhos e com dificuldade e cenho franzido observava Luka ter outro ataque ao interromper sua obra com falta de atenção, sono e inspiração, para logo então voltar a se perder no transe de seu torpor de sonhos.
                Não fumava, mal bebia e ainda assim pegara um copo limpo porém empoeirado para encher de Bourbon e acompanhar seu Lucky Strike. Infelizmente Luka passara tempo demais com Dmitri e agora tornara-se uma cópia barata sua, ainda que com talento indiscutivelmente superior ao original.
                Pousou o cigarro em sua boca para dar longas tragadas e passeou os dedos de sua mão esquerda testa acima, penteando seus – aos poucos rareando – cabelos negros e lisos, para então coçar um par de vezes sua nuca, dar a Carmem um olhar de testa franzida e sorriso de canto de boca daqueles de amor calculado, planejado, quase verdadeiro quase falso, que não diz nada demais, mas não diz nada de errado, só existe por existir num canto de quarto ao lado do abajur. Por amar esse amor de conhaque numa manhã chuvosa de sábado, decide sair sem avisar, sair sem querer, sair sem voltar talvez, talvez voltar, talvez, talvez outro dia quando ela não estiver mais lá. Talvez não devesse ter levado os cigarros.
                Um vulto subia as escadas que levavam ao andar de cima, mas não era um vulto tão importante. Nesse momento, só o lance de escadas que levava ao andar inferior e o que levava do andar inferior ao abaixo deste e assim por diante realmente importavam a Luka. O papel de parede floral velho e feio e desbotado não importava, a iluminação precária nos corredores e lances de escadas – ausente no lance de escadas entre o segundo e o primeiro andares – também não. De pouco em pouco Luka aproximava-se ao lado de fora do prédio. De frente à porta principal do edicífio – de ferro, com adornos dourados – Luka prontamente segurou a maçaneta, mas como que sentisse o que o esperava lá fora, como que esperasse o que o sentia lá fora, demorou a girá-la. Mas enfim girou-a.
                Um vento frio e seco cortou-o como um tablete de manteiga. Excitante para Luka. Gostava disso. Era não muito mais cedo que três da manhã e o céu era negro e limpo, sem estrelas, sem luar, sujo pelo brilho branco dos vários belos postes que iluminavam essa rua, boa rua bem habitada, com paralelepípedos no lugar de asfaltos, com árvores no lugar de pessoas, com solitude no lugar de solidão. O uísque caminhou Luka até uma ponte não muito longe e a fumaça de seus cigarros poderiam ser confundidas com a fumaça de sua respiração. Não via muito sentido no que fazia, nem no que vivia, nem no que escrevia, nem nas noites com Carmem, nem nas noites ou dias que passava sozinho mesmo bem acompanhado.
                Um último trago e com um toco de cigarro entre indicador e médio esquerdos olhou para o farol ao longe. Jogou não tão longe o toco de cigarro e riu, olhando com um olho esquerdo apertado e um olho direito fechado, seus polegar e indicador esquerdos agora espremendo a luz do farol. Sorriu como que satisfeito com seu trabalho bem feito. Jogou na água o copo vazio de sua mão direita e subiu no parapeito da ponte. A sensação era indescritível, toda a liberdade e toda a autonomia que o momento conferia. Toda a vida que ele finalmente sentia em seu corpo, em suas mãos, em seus dedos enquanto se esvaía, enquanto jorrava e pulsava e pulava por ele. Mas seu corpo não ia. Não pulava, não ia.
                Desceu do parapeito e acendeu outro cigarro e decidiu voltar para casa. Lembrou-se que não era possível se matar enquanto há uma obra-prima arruinada não amassada ainda presa a sua máquina de escrever.

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