Era a quarta noite sem dormir.
O som do trem azul pela madrugada não o ajudava mais a descansar os olhos. Tateou os
óculos na mesinha ao lado de sua cama, derrubando uma boa pilha de livros
velhos já relidos e iluminando sem querer seu abajur que acende com um toque.
Era uma noite quente, bem quente e a Radial Oeste é bem quente, essa tal Zona
Norte carioca é uma travessa de metal esquecida num fogão aceso. Dmitri era um
pouco de haxixe aceso sobre uma colher. Fumaça fugaz que em fuga se desfaz em
graça.
Era quarta à noite e, sem
dormir, o som do trem das oito não o deixava pensar direito. A noite de sexta
seria grande e Dmitri deveria estar praticando ao piano, mas está segurando um
cigarro já pela metade, já pela metade de si, meia idade, quase fim. Olhos
vermelhos de sono de quase cinco dias e mãos trêmulas de quase cinquenta anos
precediam uma manhã de quinta e Dmitri continuava sentado de frente para o
piano de pouco em pouco decorado por mais e mais garrafas vazias.
Santa Teresa costumava cobrar
qualidade de seus músicos e aquele não era um pianista à altura. Talvez a
sombra de alguém que fora tão bom quanto arrogante e agora pague por isso.
Talvez assombre-o saber disso e ele soube desde a chegada dos quarenta e desde
que agora ele tenha passado a ser mais um a compor um quarteto de uma nova
estrela jovem de futuro promissor – geralmente saxofonista ou trompetista e
essa vez não fugiria à regra – que viria a lotar uma casa de shows escura e
avermelhada mal iluminada por uma luz amarela a deixar o ambiente como que
aparentemente engordurado – escolha minuciosa do tipo de lugar a ser montado,
aconchegante aos que querem fugir do grande povo e unir-se à cena hype do
fenômeno underground das pseudo-pessoas pseudo-cult que rodeiam as poucas
pessoas que apreciam, de fato, a cultura. Algumas pouquíssimas pessoas estavam
indo a esse show para ver Dmitri. Treze, apenas. Treze em Teresa.
Sexta mal chegara e Dmitri mal
dormira e poucos tons variaram em seu piano, pouco fora praticado e o improviso
já não seria mais tão confiável, infelizmente, porém, obrigatório ao longo do
show. Tomou um bom banho e vestiu-se como bem gostava com uma bela camisa
laranja de linho, uma calça de gabardine bege, seus antes belos agora velhos
sapatos iate café de camurça. Poucos tons variaram em sua roupa. Estaria
apresentável, caso pudesse controlar o odor de álcool que exalava por seus
poros – álcool de cinco dias. Foram cinco dias de álcool. Fora uma longa subida
até a casa de show, uma longa subida era Santa Teresa. A caminhada do camarim
ao palco era longa para uma gente no meio de tanta gente e Dmitri,
infelizmente, não era mais nenhum gigante para não se incomodar e ainda assim o
teto era baixo demais. Como sempre começava Lá e caia em Si. Sempre facilitava.
Sábado, quase sete da manhã na
Lapa, o dia amanhecia feliz com Dmitri redescobrindo-se enorme, como em toda
manhã após um show. Se ainda fosse possível lembrar-se disso às três da
tarde...
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