terça-feira, 17 de maio de 2011

A hora final

Olhei para o relógio – quatro da tarde. A gente sempre pensa que esta hora nunca vai chegar, mas ela sempre chega. Chovia demais, quase que como se Deus estivesse arrependido do que fez, ou como se Ele estivesse chorando pelo mal causado, ainda que este mal fosse necessário, ou um bem camuflado, vá saber. A gente sempre pensa que esta hora nunca vai chegar, mas ela sempre chega – a hora da partida, a hora da saudade, a hora da dor – chovia demais e estava impossível manter a lucidez durante o velório de minha avó.

Em meio a tantos rostos inchados e vermelhos, alguns com olhos úmidos cobertos por óculos escuros, chega uma membro da Pastoral – ou seja lá qual for o novo nome deles – para rezar conosco, aliviando um pouco a tensão já densa no ar. Em um momento de comunhão, um coro dissonante numa falha tentativa de cantar em uníssono soa tão bem, como que lembrasse que ainda somos apenas homens, somos terrenos por hora e não devemos questioná-Lo – e sinto que foi MUITO importante lembrar disso, pelo tanto que O xinguei e como O xinguei!

Um reflexo do que fomos em vida é o nosso velório e minha avó esteve com seu quarto cheio, pois ela foi uma das mais belas almas vivas, mesmo com seus poucos defeitos, já que seu coração era um dos poucos ainda puros no mundo e, diga-se de passagem, um dos mais puros. Não acredito que na minha hora vá ter muita gente me vendo deitado no caixão, muito menos gente chorando por mim e eu talvez sinta uma pequena vontade de mudar – não nego que ela me serve de exemplo em diversos momentos, pela perseverança que ela teve em diversos momentos da vida, como quando decidiu seguir em frente com seus estudos, apesar de situações adversas e contextos sociais que todos já cansaram de saber, entre outros fatos que não cabem ser ditos aqui.

Ao fim da oração, saí com os olhos mareados e para minha surpresa o céu estava nublado, porém a chuva havia acabado. Acredito que esta mudança no cenário marcou sua ascensão, marcou o momento em que ela finalmente nos deixou para estar naquele espaço prometido que muitos de nós buscamos. Neste momento, muitos decidiram partir por não agüentar mais a agonia deste ritual tão doloroso e, sinceramente, não os culpo, pois talvez eu não tivesse estômago para agüentar ver uma amiga de décadas – no caso, mais de duas – partir assim.

A gente sempre pensa que esta hora nunca vai passar, mas ela sempre passa. Cinco horas da tarde e finalmente o sepultamento começaria. Caixão fechado, levamo-lo para fora e qual é minha surpresa senão o céu – antes chuvoso, úmido e opaco, logo mais nublado e cinza, agora com o dourado gritando ao horizonte, abrindo parcialmente as nuvens e deixando o azul do céu dar sua graça brevemente. Como se dissesse que aquela era sua hora e que ninguém deveria ter dúvidas, como se mostrasse que ela estava bem e que nos esperaria por tão pouco tempo se comparado aos anos juntos na eternidade do carma, como se saudasse os oitenta e um anos em que ela viveu, em que ela deu o seu coração e sua vida pela contemplação do que há de mais belo no mundo: a própria vida. Descanse em paz.

3 comentários:

Thiago Rosa Shinken disse...

Nada é tão severo e imparcial quanto a morte.

Ela daria um bom juiz de futebol.

MagicJetPack disse...

Lindo, quase chorei. =)

@Shinken
Acho que odeiam ela tanto quanto odeiam os juízes de futebol.

Martha disse...

você é um grande amor dela e sabe disso. Continuará te amando de onde ela estiver. E com certeza está muito grata e feliz por toda sua expressão... estou tranquila e me é possível dizer isso agora! beijo e te amo.