Esfregou
os olhos e bateu o copo de dose na bancada. Apontou para o fundo do copo para o
barman e esperou a nova dose chegar à borda. Olhou o fundo distorcido por trás
do translúcido uísque, encarou o que não havia para se ver com olhar ébrio e
novamente voltou sua atenção ao copo. Virou.
Esfregou
os olhos e bateu o copo de dose na bancada. Puxou um cigarro do bolso interno
de seu paletó e levou-o à boca, acendendo-o.
A primeira tragada é única e ele sabe e aproveita – sopra lentamente a
fumaça para a última estante de bebidas. Logo um homem razoavelmente alto,
razoavelmente forte, razoavelmente idiota rudemente se põe a mandá-lo apagar o
cigarro. Em resposta, Dmitri apaga o homem razoável.
Educadamente
convidado a retirar-se e agora com um olho roxo e duas mãos doloridas, Dmitri
segue seu destino cambaleando debaixo de luzes amarelas e fracas dos postes
enfileirados ao longo da rua. Com um novo cigarro à boca, lembra que Emília não
gostava de seus cigarros. Ninguém gostava. Talvez só Emília importasse naquele
momento.
Emília
havia sido sua última com seus olhos azuis, nariz aquilino, sapatilhas de
bailarina e sorrisos e sorrisos. Dmitri decidira nunca mais vê-la e votos como tais
jamais poderiam ser quebrados e em uma noite como essa ele obviamente iria até
a casa dela.
Não
faltava muito para chegar e ele vinha pensando em como era uma pessoa difícil e
que talvez não pudesse culpar Emília por tê-lo deixado, não poderia culpá-la por
odiar o que havia de duro e frio nele – seus olhos de chumbo, seus punhos de
chumbo, seu coração de chumbo – e tudo o que havia de mau e inconsequente, como
seu alcoolismo, ou seu fumo exacerbado. Suas noites não eram as mesmas há tempos e há
tempos só lhe restava o negro sobre negro do céu sem estrelas da cidade grande,
os vagalumes em volta dos postes – pequenas constelações urbanas –, o vermelho
dos punhos, manchas sobre manchas que transbordamos sobre a vida como vinhos
tintos sobre camisas de linho. Certas manchas, quando ficam, costumam estragar
a melhor das camisas e em casos como este não há escolha senão a de jogá-la
fora e vê-la queimar e queimar e queimar até que só reste a lembrança.
Emília
não gostava do boxe, não gostava das lutas, das brigas de bar. Encantaram-na
até revelarem-se hábitos. Tentara dissuadir Dmitri a parar tantas vezes. Agora
seria a vez dele de tentar dissuadir Emília e fazê-la parar de beber para
escutá-lo, aceitá-lo novamente.
Enfim
chegara à portaria de seu prédio. Prédio antigo, com tanta classe.
Emília...
Interfonou
e aguardou resposta, esperando que a mesma tardasse. Tão logo o tocou, uma voz
doce e sonolenta respondeu um triste e sonolento “Alô?!” de quem esperou por
horas. Entrou pela porta pesada de ferro com vidro e subiu a escada em espiral –
o que sempre fora difícil enquanto estivera bêbado, ou seja, sempre – para chegar
ao segundo andar. A porta estava
entreaberta, mas Dmitri bateu-a por hábito, para em seguida fechá-la. Emília
esperava no sofá com estampa floral, com olhos tristes de azul sobre vermelho,
pobremente iluminada por um abajur a meia-luz e pelo singelo ponto do cigarro
em seu cinzeiro.
Tamanho
foi o espanto de Dmitri ao vê-la fumando. Como poderia ela... ? Fez o que tinha
a ser feito: atirou o cinzeiro pela janela, quebrando-a. Emília acompanhou com
os olhos o cinzeiro ao passo que ele abandonava seu lar e não teve reação.
Dmitri apanhou o cigarro entre seus dedos e jogou-o no lixo. Seus olhos tremiam
de excitação e raiva enquanto ele gritava para que ela fosse deitar, que ela
dormisse e que tão logo se encerrasse aquela noite. Emília assentiu sem reação
e foi deitar, escoltada por Dmitri até sua cama. Ao voltar para a sala, Dmitri
viu um frasco vazio de Valium e soube finalmente que ela não estava bem. Que,
apesar de seus olhos, de seus punhos, de seu coração, Emília o amava e que as
noites sem ele também eram duras para ela. Esperança figurou em seu discreto
sorriso ao sair e Dmitri se pôs a descer as escadas em espiral.
Ao chegar ao portão de saída,
parou. Parou para pensar na noite que se desenrolara e em quão estúpido vinha
sendo. Em como poderia ser melhor para
Emília. Em como deveria ser melhor para ela. Pararia de beber, de fumar, de
brigar. É, talvez houvesse esperança para tipos como ele, talvez fosse essa a
chance de recomeçar. Ou não.
Sentiu cheiro de queimado.
Cheiro forte de queimado e vinha de cima, talvez do segundo andar. Subia
correndo as escadas em espiral, mas um passo em falso o fez cair e rolar escada
abaixo. A dor lasciva percorria seu corpo e sua perna pulsava forte, tão forte –
uma fratura exposta na tíbia esquerda era tudo de que Dmitri não precisava
naquele momento. Apenas o álcool e a determinação mantinham a dor suportável o
suficiente para checar se Emília estava bem.
À porta dela, percebeu que o
cheiro vinha de seu apartamento. Por sorte a porta era feita de madeira frágil,
mas ainda assim teve de se esforçar para arrombá-la. Aterrador fora sua visão ao
entrar – o incêndio se alastrou pela casa inteira e o foco claramente era a
lixeira. Mancava e cada passo era mais difícil que o anterior e tudo o que o
movia era sua vontade de salvar Emília. Entrou em seu quarto para encontrá-la
desmaiada, impossibilitada de acordar, impossibilitada de fugir, de sobreviver
sem sua ajuda. Tomou-a em seus braços e pôs-se a correr o quanto pôde para fora
daquele lugar, porém sua vontade era tanta, tanta e infelizmente não era o
bastante – tropeçou sob seu joelho esquerdo e sentiu que não era mais possível
continuar. A dor e a massiva inalação de fumaça estavam expulsando rapidamente sua
consciência e Dmitri logo soube que não sobreviveria. Só pôde chorar, chorar
por tanto, por tanto que não se atentou – o amor entre eles sempre estivera lá,
no entanto agora estava fadado ao fim, a ser interrompido – “até que a morte os
separe”.
Ao chorar, riu da ironia que
era perder seus olhos de chumbo e perguntou-se se seu coração de chumbo iria
finalmente derreter com o de coração de pano de Emília. Abraçou-a forte,
agradeceu pelo incêndio e esperou pelo final.