Não precisava de muito para
ser feliz. Acordava metade de seus dias na casa dela, na cama dela – na maioria
de ressaca – e olhava aquele rosto frágil e belo e adormecido em seu ombro
direito, aqueles longos e cheios cabelos negros espalhando-se de seu pescoço à
ponta semi-rija de seu pênis caído entre suas pernas. Aquelas pernas trançavam
as suas e aqueles braços lhe tomavam posse. A respiração era aquela ofegante
daqueles de sono irrequieto e o quarto estava sempre escuro. Por muito tempo a
insônia lhe abandonou, mas das últimas vezes lhe fez companhia. O aparelho
condicionador voltara a lhe incomodar o nariz ao acordar e já não era a mesma
coisa acordar às quatro naquele quarto.
Levantava e desligava o
aparelho e abria as cortinas. Lembrava-se de sua nudez, mas àquela hora não se
faria incômodo. Abria as janelas e olhava o céu púrpuro incandescido pela
iluminação dos diversos prédios vizinhos, criando o contraste do neon contra o
escuro. Ventava, mas era tão gostoso. Buscou na mesa de cabeceira seu Camel e seu
isqueiro de prata, ambos pela metade, apoiou seus cotovelos no parapeito e
acendeu. Fechou os olhos e sentiu o primeiro trago do dia preencher cada
alvéolo em seus pulmões. Abriu os olhos e esfregou a remela formada por uma boa
noite de sono – e dessa vez nem acordara tão enjoado, só bebera quatro doses na
noite anterior. Olhou para sua máquina de escrever portátil e sentiu vergonha
de si mesmo. Sempre que dormia fora, carregava-a e havia meses que não escrevia
nada. Estava feliz. Diziam que por isso era incapaz de escrever. Jogou a guimba
pela janela e viu-a espatifar-se de um canto a outro do pequeno pátio interno
do condomínio, o brilho do fogo ainda desperto no cigarro ziguezagueando entre
os quiques, até finalmente apagar-se.
Afastou-se da janela e tateou
o chão da sala – esta mal iluminada – para encontrar sua calça jogada, então
levantando e vestindo-a. Faria o café, não fosse a preguiça. Droga!, por que
nâo fazer o café? Ela acorda às oito, mas é só fazer outro depois, de novo. Mas
é uma pena que nesta casa não haja nenhuma bebida – pensou. – Realmente me faz
falta em momentos como esse. Vestiu sua camiseta e desceu, levando sua chave da
casa dela, para buscar alguma bebida na rua. A essa hora nenhum dos poucos
lugares abertos vendia bebida, exceto por – fora do cardápio – uma lanchonete
de esquina de uma rua paralela. É uma caminhada rápida, pensou.
Na metade do caminho para o
fim da rua, cruzou com um morador de rua corpulento, bem idoso, maltrapilho
como de costume, porém era notável como suas roupas conservavam, senão no
aspecto, a aparência de terem sido caras alguma vez há muitos anos.
- Olá, meu jovem, tudo bem com
o senhor? Voltando da igreja? – perguntou
o morador de rua.
- Boa noite. Não, não, estou
indo comprar algo para beber. O senhor me acompanha?
- Não bebo há muitos anos, meu
filho – mentiu, pois seu hálito entregava a fome e a embriaguez disfarçada na
voz. – Mas devo lhe pedir ajuda. Estou muito cansado, durmo na rua já há três
semanas e meus pés já estão muito cansados. Será que o senhor não poderia me
pagar uma diária em algum hotel da região? Uma noite no quarto mais simples e é
tudo que lhe peço. Estou muito cansado – disse entre tosses.
- Não sei, não trouxe muito
dinheiro. Não posso lhe pagar algo para comer?
- Não me ajuda como uma noite
em uma cama, mas pode ser. Podemos ir a uma lanchonete lá na frente? Peço o
sanduíche mais barato, o mais simples, e isso já me seria ótimo – sua voz era
calma, grave e pausada, digna de um senhor de idade.
- Pode pedir mais que isso e
eu já ia àquela lanchonete. Beba comigo ao chegar lá.
- Mas lá vende bebida?
Alcoólica, quero dizer? – perguntou surpreso.
- Sim, mas tratemos de andar.
E caminharam pela rua quase
deserta, cheia de porteiros de hotel, casais turistas – tanto os apaixonados,
como os que tentavam salvar suas relações frágeis e antigas – e os poucos
trôpegos ébrios naturais das manhãs de quarta-feira.
Enfim chegaram, a passos
lentos de quatro pés inchados, à lanchonete. O velho fez seu pedido – o mais
simples, como prometera – e o rapaz pediu duas doses de conhaque barato, a
única bebida que a lanchonete dispusera a vender clandestinamente. Bebemos e
Dmitri pediu mais duas doses para viagem, pagando logo em seguida e deixando o
velho a lhe agradecer e a comer seu sanduíche.
Voltou ao apartamento sem
fazer barulho, truque que aprendera em seus anos de adolescente chegando bêbado
na casa de seus pais pela madrugada. Pôs água a ferver e bebeu meia dose da
bebida vagabunda enquanto isso. Ao fim do processo, despejou a água no pó e fez
então o café a beber. Forte, pensou, como sempre. Mas faltava o conhaque – e
logo o misturou. Após duas xícaras, ligou o abajur, encontrou seu livro debaixo
da mesa de centro e começou a ler. Poucos impressionaram-no tanto como Huxley e
decerto mesmo Huxley seria incapaz de impressioná-lo novamente após A Ilha. Com
o tempo viria a ter sono e nesses momentos levantar e fumar na janela seria a
solução.
Viu o céu clarear, o segundo
copo esvaziar e sua mulher despertar. Primeiro os olhos, depois a coluna e num
rápido movimento os braços e as pernas. Tremiam conforme esticavam-se e um
sorriso formava-se conforme ganhava-se consciência. Insônia de novo, bebê,
perguntou. Mas claro que sim, Dmitri respondeu. Você não fumou na janela,
fumou? A casa está fedendo! Dmitri então fechou seu livro e caminhou até a
cama. Beijou-a. Prometo compensar, disse enquanto tirava a camiseta. Era
engraçado, pensava, pois momentos como esse, em dias como esse, nos quais o céu
ainda brilhava magenta, lembrava-se de Um País Estranho de Hemingway,
lembrava-se de como entrava em qualquer outro lugar ao entrar nela. Não tinham
mais um canto para si, tinham o mundo inteiro e nada mais, não havia mais
ninguém. É muito grande pra mim, ela dizia, e de fato era o que ele sentia
também. Ao terminar, o arfar diminuía e o céu perdia o brilho do amanhecer e
tomava o opaco tom azulado da manhã já formada. Eu faço o café, disse ele. Para
variar, zombou Amélie.
Já quase atrasado, tomou seu
café e seu banho, deixando Amélie para se arrumar e despedindo-se com um beijo.
Da casa dela a seu trabalho não eram mais de vinte minutos a caminhar e decidiu
ir. Trabalhava em uma agência de publicidade no topo de um prédio comercial na
zona sul do Rio de Janeiro. Era mais uma manhã difícil, como outra qualquer.
Principalmente ao lembrar que não era feliz. Não com seu trabalho, não com sua
vida, muito menos com seus vícios. Um dia de trabalho não era o suficiente para
levar paz a sua mente.
Às sete saiu e foi a um bar
encontrar-se com alguns amigos. Eram como ele, pensou. Todos tinham olhares
vazios cheios de brilho, típicos de quem se rende à vileza do álcool e das
drogas. Dmitri lembrava-se das noites de recuperação nas reuniões em que
frequentava, lembrava-se da força que tinha, da serenidade que não tinha e da
sabedoria que lhe escapava. Pensou no mundo doente em que habitava, no qual as
pessoas tinham vergonha de viver e cujo esporte era o de disfarçar a repulsa à
vida com celebrações.
Um rapaz disse uma vez que
Dmitri não conseguia escrever justamente por estar feliz. Para que fosse capaz
de escrever, era necessário estar triste e magoado, humilhado, derrotado pelo
dia-a-dia que feroz consome toda fagulha da energia que aqueles que pensam
demais são capazes de criar.
Naquela noite, lá pelas onze,
o bar vazio e os copos cheios – os copos daqueles que ficam, daqueles sem
brilho – o céu sem estrelas como só a cidade grande de prédios de lâmpadas
amarelas que nunca apagam, nem mesmo às cinco da manhã, é capaz de convidar,
naquela noite, naquela escuridão, Dmitri lembrou-se que não precisava de muito
para ser feliz.
Então despediu-se dos demais,
pediu um táxi para voltar para sua casa e pôs-se a escrever.