terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Conversa de Lencóis I (Interlúdio)


- Eu bebi uma cerveja com ele. – Disse Carmem, cobrindo-se. – Mas foi só uma cerveja. Juro.
                - E daí? – Respondeu Luka, acendendo seu cigarro. Era um cigarro compreensível, aquele depois da transa. Ainda assim, Luka agora fumava muito mais do que já fumou ao longo de sua vida.
                - E daí nada. Achei que você fosse querer saber. Eu iria querer.
                - Por que gostaria de saber? O que há de especial nisso? Houve algo de especial nisso?
                - Primeiro que eu não gostaria de saber: iria querer saber, mas a muito contragosto e até bem relutante, mas iria querer, sim. Segundo que você sabe o que Dmitri quer de mim e suponho que não esteja confortável com isso.
                - Por que não estaria? Todo homem tem o direito de achar o que quiser, querer o que quiser. Ele está no direito dele em querer ter você e somos amigos. Respeito isso dele e sei que não é pessoal. Se você me trair com ele, a culpa será toda tua. Só tua.
                - Mas como assim? – Disse Carmem, cobrindo-se mais, além dos ombros, expondo apenas o rosto de pescoço coberto, os cabelo longos ruivos e macios e os dedos que seguravam o lençol.
                - Mas como assim que você está comigo. Você. Só você. Não é ele que está e se algo acontecer, terá sido falha tua. – E então Luka bateu as cinzas de seu cigarro no cinzeiro da cabeceira da cama, espreguiçando-se logo em seguida – Mas isso não importa, você não faria nada disso, faria?
                - Não faria...
                - Não?
                - Não, não faria... Não faria.
                - Tudo bem. Não faria. Sei que não faria. Me passa outro Lucky?
                - Claro. – pegando o maço e dando a Luka – Mas, Luka, me fala o que você foi fazer na quinta passada. Acordei no meio da noite sem você, uma folha queimada em cima da mesa, uma rasgada, presa na máquina de escrev...
                - Olivetti. Chama-se Olivetti. O-L-I-V...
                - Tá bem, tá bem. Uma folha rasgada presa à Olivetti, uma garrafa de uísque vazia ao chão, enfim, você longe. Você longe, o sofá vazio, minha cama vazia, minhas pernas vazias, meus braços vazios, tão frios, estava frio, tão frio e você deixou a janela aberta. Levantei para fechar a janela e pensei ter visto você equilibrado no parapeito da ponte dos mendigos, mas é loucura minha, não é? Vc não tem motivos pra pular, claro.
                - Claro. Loucura sua. Se eu tivesse pulado, não estaríamos conversando sobre você pensar ter me visto pulando de algum lugar.
                - Ai, Luka! Luka, eu fiquei tão preocupada! Nem dormi até você voltar! Bêbado, fedendo a Bourbon e a cigarros, mas vivo e em casa e comigo! Não sei onde estive com a cabeça ao pensar... Aliás, não, não pensei em nada. Vem comigo, me abraça. Me abraça e pela manhã você escreve sobre mim, sobre o quarto creme de luzes fracas amareladas e lençóis de cetim branco, sobre a cama circular, sobre meu beijo, sobre mim... Sobre nós dois.
                - Carmem – Luka estava atônito com o turbilhão que fora sua garota neste momento e em quanto ela deveria amá-lo para exibir uma paixão torrencial desta forma –, mas é claro que eu escreveria sobre nossa noite. Essa obra eu vou chamar de Gripe, pra fazer jus à gripe que peguei na quinta-feira.

sábado, 19 de janeiro de 2013

A Vista e As Surpresas


                - Tenho uma cerveja, quer? – disse de cenhos franzidos, virando o rosto para não olhar para ela. – Não é nenhum dos teus vinhos chiques, mas quebra um galho.
                Ele perguntou isso já sabendo que ela aceitaria a cerveja, nada poderia dar errado neste momento, fora tudo longa, fria, minuciosa e demoradamente calculado segundos antes. O tom, o jeito, o desinteresse, tudo falso, tudo ele, tudo do que ela precisa, tudo do que ela sentia falta em Luka, tudo o que ela não via desde que o conhecera, naquele Novembro chuvoso. Dias quentes de noites úmidas e abafadas, afobadas para cada pessoa naquela cidadezinha chamada Rio de Janeiro, uma pobre cidade grande que de tão longe parecia uma ilha.
                O terraço era o ambiente perfeito, aquele prédio era perfeitamente alto, as luzes perfeitamente amarelas e todo aquele mar de luzes acesas de todos os prédios menores, todos os postes nas ruas, sinais vermelhos, bares abertos, hospitais acesos com gente apagada, sinais verdes e carros parados, boates apagadas com gente acesa, mar de pessoas atravessando sinais amarelos e a noite começava nas onze da noite da zona sul do Rio. Essa era a vista que Dmitri e Carmem tinham e essa vista perturbadora e cativante seria capaz de criar o momento perfeito para que Dmitri pudesse conquistá-la. A véspera de Natal também dava a condição ideal para isso. Era só esperar a resposta – o álcool faria o resto.
                Dmitri tinha “quando”, “como”, “onde” e “porque” para fazer aquele “que” tão esperado com Carmem e agora...
                - Não, obrigado. Vc sabe que eu não bebo. – ...ela respondia.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Parapeitos e Ruínas


                Tec tec. Tec tec tec etec tectetec tectetetec tetec tec tec tectetectetectetetec tetetetetetetetetetec. Tec… Tec… Tec tec tectetetectetec tec tetec tec. Tec tetectetectetetecetetetetetetetectetec – MERDA! Merda, merda, merda! Não era nada disso! Nada disso!
                O estampido seco, forte e bruto na mesa não foi tão alto, mas foi tão agressivo que quase acordou Carmem. Esfregara os olhos e com dificuldade e cenho franzido observava Luka ter outro ataque ao interromper sua obra com falta de atenção, sono e inspiração, para logo então voltar a se perder no transe de seu torpor de sonhos.
                Não fumava, mal bebia e ainda assim pegara um copo limpo porém empoeirado para encher de Bourbon e acompanhar seu Lucky Strike. Infelizmente Luka passara tempo demais com Dmitri e agora tornara-se uma cópia barata sua, ainda que com talento indiscutivelmente superior ao original.
                Pousou o cigarro em sua boca para dar longas tragadas e passeou os dedos de sua mão esquerda testa acima, penteando seus – aos poucos rareando – cabelos negros e lisos, para então coçar um par de vezes sua nuca, dar a Carmem um olhar de testa franzida e sorriso de canto de boca daqueles de amor calculado, planejado, quase verdadeiro quase falso, que não diz nada demais, mas não diz nada de errado, só existe por existir num canto de quarto ao lado do abajur. Por amar esse amor de conhaque numa manhã chuvosa de sábado, decide sair sem avisar, sair sem querer, sair sem voltar talvez, talvez voltar, talvez, talvez outro dia quando ela não estiver mais lá. Talvez não devesse ter levado os cigarros.
                Um vulto subia as escadas que levavam ao andar de cima, mas não era um vulto tão importante. Nesse momento, só o lance de escadas que levava ao andar inferior e o que levava do andar inferior ao abaixo deste e assim por diante realmente importavam a Luka. O papel de parede floral velho e feio e desbotado não importava, a iluminação precária nos corredores e lances de escadas – ausente no lance de escadas entre o segundo e o primeiro andares – também não. De pouco em pouco Luka aproximava-se ao lado de fora do prédio. De frente à porta principal do edicífio – de ferro, com adornos dourados – Luka prontamente segurou a maçaneta, mas como que sentisse o que o esperava lá fora, como que esperasse o que o sentia lá fora, demorou a girá-la. Mas enfim girou-a.
                Um vento frio e seco cortou-o como um tablete de manteiga. Excitante para Luka. Gostava disso. Era não muito mais cedo que três da manhã e o céu era negro e limpo, sem estrelas, sem luar, sujo pelo brilho branco dos vários belos postes que iluminavam essa rua, boa rua bem habitada, com paralelepípedos no lugar de asfaltos, com árvores no lugar de pessoas, com solitude no lugar de solidão. O uísque caminhou Luka até uma ponte não muito longe e a fumaça de seus cigarros poderiam ser confundidas com a fumaça de sua respiração. Não via muito sentido no que fazia, nem no que vivia, nem no que escrevia, nem nas noites com Carmem, nem nas noites ou dias que passava sozinho mesmo bem acompanhado.
                Um último trago e com um toco de cigarro entre indicador e médio esquerdos olhou para o farol ao longe. Jogou não tão longe o toco de cigarro e riu, olhando com um olho esquerdo apertado e um olho direito fechado, seus polegar e indicador esquerdos agora espremendo a luz do farol. Sorriu como que satisfeito com seu trabalho bem feito. Jogou na água o copo vazio de sua mão direita e subiu no parapeito da ponte. A sensação era indescritível, toda a liberdade e toda a autonomia que o momento conferia. Toda a vida que ele finalmente sentia em seu corpo, em suas mãos, em seus dedos enquanto se esvaía, enquanto jorrava e pulsava e pulava por ele. Mas seu corpo não ia. Não pulava, não ia.
                Desceu do parapeito e acendeu outro cigarro e decidiu voltar para casa. Lembrou-se que não era possível se matar enquanto há uma obra-prima arruinada não amassada ainda presa a sua máquina de escrever.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O jazz amarelo de sábado pela manhã


Era a quarta noite sem dormir. O som do trem azul pela madrugada não o ajudava mais a descansar os olhos. Tateou os óculos na mesinha ao lado de sua cama, derrubando uma boa pilha de livros velhos já relidos e iluminando sem querer seu abajur que acende com um toque. Era uma noite quente, bem quente e a Radial Oeste é bem quente, essa tal Zona Norte carioca é uma travessa de metal esquecida num fogão aceso. Dmitri era um pouco de haxixe aceso sobre uma colher. Fumaça fugaz que em fuga se desfaz em graça.
Era quarta à noite e, sem dormir, o som do trem das oito não o deixava pensar direito. A noite de sexta seria grande e Dmitri deveria estar praticando ao piano, mas está segurando um cigarro já pela metade, já pela metade de si, meia idade, quase fim. Olhos vermelhos de sono de quase cinco dias e mãos trêmulas de quase cinquenta anos precediam uma manhã de quinta e Dmitri continuava sentado de frente para o piano de pouco em pouco decorado por mais e mais garrafas vazias.
Santa Teresa costumava cobrar qualidade de seus músicos e aquele não era um pianista à altura. Talvez a sombra de alguém que fora tão bom quanto arrogante e agora pague por isso. Talvez assombre-o saber disso e ele soube desde a chegada dos quarenta e desde que agora ele tenha passado a ser mais um a compor um quarteto de uma nova estrela jovem de futuro promissor – geralmente saxofonista ou trompetista e essa vez não fugiria à regra – que viria a lotar uma casa de shows escura e avermelhada mal iluminada por uma luz amarela a deixar o ambiente como que aparentemente engordurado – escolha minuciosa do tipo de lugar a ser montado, aconchegante aos que querem fugir do grande povo e unir-se à cena hype do fenômeno underground das pseudo-pessoas pseudo-cult que rodeiam as poucas pessoas que apreciam, de fato, a cultura. Algumas pouquíssimas pessoas estavam indo a esse show para ver Dmitri. Treze, apenas. Treze em Teresa.
Sexta mal chegara e Dmitri mal dormira e poucos tons variaram em seu piano, pouco fora praticado e o improviso já não seria mais tão confiável, infelizmente, porém, obrigatório ao longo do show. Tomou um bom banho e vestiu-se como bem gostava com uma bela camisa laranja de linho, uma calça de gabardine bege, seus antes belos agora velhos sapatos iate café de camurça. Poucos tons variaram em sua roupa. Estaria apresentável, caso pudesse controlar o odor de álcool que exalava por seus poros – álcool de cinco dias. Foram cinco dias de álcool. Fora uma longa subida até a casa de show, uma longa subida era Santa Teresa. A caminhada do camarim ao palco era longa para uma gente no meio de tanta gente e Dmitri, infelizmente, não era mais nenhum gigante para não se incomodar e ainda assim o teto era baixo demais. Como sempre começava Lá e caia em Si. Sempre facilitava.
Sábado, quase sete da manhã na Lapa, o dia amanhecia feliz com Dmitri redescobrindo-se enorme, como em toda manhã após um show. Se ainda fosse possível lembrar-se disso às três da tarde...