quinta-feira, 19 de julho de 2012

Soldado de Chumbo


                Esfregou os olhos e bateu o copo de dose na bancada. Apontou para o fundo do copo para o barman e esperou a nova dose chegar à borda. Olhou o fundo distorcido por trás do translúcido uísque, encarou o que não havia para se ver com olhar ébrio e novamente voltou sua atenção ao copo. Virou.
                Esfregou os olhos e bateu o copo de dose na bancada. Puxou um cigarro do bolso interno de seu paletó e levou-o à boca, acendendo-o.  A primeira tragada é única e ele sabe e aproveita – sopra lentamente a fumaça para a última estante de bebidas. Logo um homem razoavelmente alto, razoavelmente forte, razoavelmente idiota rudemente se põe a mandá-lo apagar o cigarro. Em resposta, Dmitri apaga o homem razoável.
                Educadamente convidado a retirar-se e agora com um olho roxo e duas mãos doloridas, Dmitri segue seu destino cambaleando debaixo de luzes amarelas e fracas dos postes enfileirados ao longo da rua. Com um novo cigarro à boca, lembra que Emília não gostava de seus cigarros. Ninguém gostava. Talvez só Emília importasse naquele momento.
                Emília havia sido sua última com seus olhos azuis, nariz aquilino, sapatilhas de bailarina e sorrisos e sorrisos. Dmitri decidira nunca mais vê-la e votos como tais jamais poderiam ser quebrados e em uma noite como essa ele obviamente iria até a casa dela.
                Não faltava muito para chegar e ele vinha pensando em como era uma pessoa difícil e que talvez não pudesse culpar Emília por tê-lo deixado, não poderia culpá-la por odiar o que havia de duro e frio nele – seus olhos de chumbo, seus punhos de chumbo, seu coração de chumbo – e tudo o que havia de mau e inconsequente, como seu alcoolismo, ou seu fumo exacerbado.  Suas noites não eram as mesmas há tempos e há tempos só lhe restava o negro sobre negro do céu sem estrelas da cidade grande, os vagalumes em volta dos postes – pequenas constelações urbanas –, o vermelho dos punhos, manchas sobre manchas que transbordamos sobre a vida como vinhos tintos sobre camisas de linho. Certas manchas, quando ficam, costumam estragar a melhor das camisas e em casos como este não há escolha senão a de jogá-la fora e vê-la queimar e queimar e queimar até que só reste a lembrança.
                Emília não gostava do boxe, não gostava das lutas, das brigas de bar. Encantaram-na até revelarem-se hábitos. Tentara dissuadir Dmitri a parar tantas vezes. Agora seria a vez dele de tentar dissuadir Emília e fazê-la parar de beber para escutá-lo, aceitá-lo novamente.
                Enfim chegara à portaria de seu prédio. Prédio antigo, com tanta classe.
                Emília...
                Interfonou e aguardou resposta, esperando que a mesma tardasse. Tão logo o tocou, uma voz doce e sonolenta respondeu um triste e sonolento “Alô?!” de quem esperou por horas. Entrou pela porta pesada de ferro com vidro e subiu a escada em espiral – o que sempre fora difícil enquanto estivera bêbado, ou seja, sempre – para chegar ao segundo andar.  A porta estava entreaberta, mas Dmitri bateu-a por hábito, para em seguida fechá-la. Emília esperava no sofá com estampa floral, com olhos tristes de azul sobre vermelho, pobremente iluminada por um abajur a meia-luz e pelo singelo ponto do cigarro em seu cinzeiro.
                Tamanho foi o espanto de Dmitri ao vê-la fumando. Como poderia ela... ? Fez o que tinha a ser feito: atirou o cinzeiro pela janela, quebrando-a. Emília acompanhou com os olhos o cinzeiro ao passo que ele abandonava seu lar e não teve reação. Dmitri apanhou o cigarro entre seus dedos e jogou-o no lixo. Seus olhos tremiam de excitação e raiva enquanto ele gritava para que ela fosse deitar, que ela dormisse e que tão logo se encerrasse aquela noite. Emília assentiu sem reação e foi deitar, escoltada por Dmitri até sua cama. Ao voltar para a sala, Dmitri viu um frasco vazio de Valium e soube finalmente que ela não estava bem. Que, apesar de seus olhos, de seus punhos, de seu coração, Emília o amava e que as noites sem ele também eram duras para ela. Esperança figurou em seu discreto sorriso ao sair e Dmitri se pôs a descer as escadas em espiral.
    Ao chegar ao portão de saída, parou. Parou para pensar na noite que se desenrolara e em quão estúpido vinha sendo.  Em como poderia ser melhor para Emília. Em como deveria ser melhor para ela. Pararia de beber, de fumar, de brigar. É, talvez houvesse esperança para tipos como ele, talvez fosse essa a chance de recomeçar. Ou não.
Sentiu cheiro de queimado. Cheiro forte de queimado e vinha de cima, talvez do segundo andar. Subia correndo as escadas em espiral, mas um passo em falso o fez cair e rolar escada abaixo. A dor lasciva percorria seu corpo e sua perna pulsava forte, tão forte – uma fratura exposta na tíbia esquerda era tudo de que Dmitri não precisava naquele momento. Apenas o álcool e a determinação mantinham a dor suportável o suficiente para checar se Emília estava bem.
À porta dela, percebeu que o cheiro vinha de seu apartamento. Por sorte a porta era feita de madeira frágil, mas ainda assim teve de se esforçar para arrombá-la. Aterrador fora sua visão ao entrar – o incêndio se alastrou pela casa inteira e o foco claramente era a lixeira. Mancava e cada passo era mais difícil que o anterior e tudo o que o movia era sua vontade de salvar Emília. Entrou em seu quarto para encontrá-la desmaiada, impossibilitada de acordar, impossibilitada de fugir, de sobreviver sem sua ajuda. Tomou-a em seus braços e pôs-se a correr o quanto pôde para fora daquele lugar, porém sua vontade era tanta, tanta e infelizmente não era o bastante – tropeçou sob seu joelho esquerdo e sentiu que não era mais possível continuar. A dor e a massiva inalação de fumaça estavam expulsando rapidamente sua consciência e Dmitri logo soube que não sobreviveria. Só pôde chorar, chorar por tanto, por tanto que não se atentou – o amor entre eles sempre estivera lá, no entanto agora estava fadado ao fim, a ser interrompido – “até que a morte os separe”.
Ao chorar, riu da ironia que era perder seus olhos de chumbo e perguntou-se se seu coração de chumbo iria finalmente derreter com o de coração de pano de Emília. Abraçou-a forte, agradeceu pelo incêndio e esperou pelo final.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

(Ensaio sobre) Cinza(s)


Ventava tanto. Muita gente abrigava-se naquela passarela aberta, no segundo piso. Carros passavam, logo abaixo, para-brisas trabalhavam lentos, debris se formavam ao centro da paisagem dos olhos desinteressados, fixos em lugar algum.
Eu olhava para qualquer lugar.
Céu cinza sobre nuvens cinza sobre prédios cinza com gente cinza e ela quieta me olhava. Sorria. Sorria um sorriso amarelo, amarelo, mas já me aquecia. Eu batia as cinzas só para desviar o olhar, para quebrar aquele momento insuportável, aquela saturação de ar nos meus pulmões, rubor em meu rosto, cinza todo o resto e eu não resistia e olhava novamente, apenas para vê-la sorrir e desviar o olhar.
Eu tragava para qualquer lugar.
As pessoas e os burburinhos, de mansinho se aquietavam pela minha falta de interesse e tornavam-se ruídos surdos, gente borrada, um blur no meio do nada, um momento particular. Meu momento. Talvez o dela, também, mas o meu momento.
Olhos cerrados, olho-a de lado e encontro seus olhos a me esperar.
Levanto para chegar à beira da passarela, passo meus olhos pelo cinza ao céu, pela chuva ao chão, pelas pessoas atravessando a rua com pressa – e elas riem, riem, riem e aproveitam um breve retorno aos dias de criança – e disfarço, mas penso nela e em como é estranho não ter outras coisas pelo que pensar. Bato as cinzas à beira e vejo o vento tragá-las consigo até longe, bem longe. Imagino que essa seja a liberdade – viver a mercê da corrente, sem escolha e sem rumo, sem culpa, sem fim. Apenas espera-se queimar e queimar bem rápido e deixar o vento trabalhar.
Nessas horas, principalmente ao ver novamente tais olhos negros com sorriso branco, agradeço por não ser livre. A escolha ainda é minha.