segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A Última Gota

Dmitri estava apertado. Tanta vodka não faria bem a ninguém, mas isso nunca quis dizer muita coisa pra ele. No caminho, estava pensando na última gota de suor que correria pelo seu corpo. O Rio de Janeiro era uma cidade quente, não havia dúvidas. Seu suor o cobria como que derramasse um pouco de si sob a calçada, um pouco de vida que ficava pra trás e deixava sua marca molhada no cimento pelo qual passava. Dmitri refletia, enquanto perdia sua vida aos poucos, nas suas últimas gotas de suor.
Quando Dmitri acreditou que não poderia mais suportar o castigo do poderoso Sol, quando acreditou que não havia mais máculas para justificar uma punição cruel que só aqueles que viviam sob o Trópico de Capricórnio conheciam, neste momento, sentiu as primeiras gotas de orvalho que o abraçariam, trariam o carinho que tanto esperava e que cuidariam de seus ferimentos. Lembrou-se de quando era uma criança e dos dias em que olhava para o mundo pelo lado de dentro da janela, com o rabiscar d’água passeando pelo vidro enquanto os estalos se propagavam pelas sacadas e as poças se formavam nos buracos do asfalto. Memórias ternas de quando seu pai chegava atrasado e, ainda assim, com um sorriso no rosto, com a indisfarçável saudade que sentia da família. Foi quando se lembrou da saudade que sentia de seu pai. Velho, decrépito, estava morto, ainda que entre os vivos. Uma vida de decepções havia consumido seu coração e sua alma, o tornando irreconhecível. Seu rosto, agora destorcido, estava amargo. Suas mãos, enrugadas e descascadas, não se encontravam sem um cigarro entre seus dedos por mais de cinco minutos. Seus olhos, que brilhavam leves com a esperança e com os sonhos dos bem-aventurados, agora estavam opacos e pesados. Seu peito, que carregava vida, agora estava vazio. Dmitri entendia que uma vida absurda era mortal para quem tem o simples apreço pela vida, mas nunca foi capaz de entender que seu pai foi dono das escolhas que fez e que se era infeliz, este era apenas o retrato que um dia pintara. Ele, então, começou a culpar a sociedade como seu pai o fez, antes de perder sua sanidade. Dmitri, então, observava a última gota de chuva cair sobre seus lábios.
Foi então que se deu conta de que seu dia-a-dia era vazio e que sua vida não tinha sentido. Estudava para se tornar uma pessoa comum, com seu trabalho comum, que ganharia seu dinheiro comum. Nada contra a mediocridade, mas naquele momento Dmitri percebeu que não sabia o porquê de cada atitude sua. Não sabia o porquê de seu trabalho, o porquê de seu dinheiro, ou o porquê de sua vida. Babaquices filosóficas à parte, pondo o prático no prático e o real entre seus iguais, ele quis ser tanto, no entanto se tornou quase nada. Não era feliz com sua escolha, não compreendia que havia certo glamour na figura de um indigente, certo charme que só um John Doe teria. A indiferença lhe assustava, lhe era feia. Não entendia que os homens eram todos iguais, uns mais iguais que os outros, tão desiguais. Estava sentindo que a última gota se aproximava e que iria transbordar em breve.
Nem percebeu que havia chegado em casa, graças aos pensamentos que sem piedade bombardeavam sua vã consciência, e logo foi ao banheiro. Acalmava-se, aos poucos, quando, ao terminar, pensou em algo absurdo como sua vida. “A última gota sempre cai na cueca”, pensou Dmitri. Sua resposta, dada em voz alta, foi “Foda-se.”.
Dmitri vestiu-se rapidamente, sem balançar, lavou suas mãos e se dirigiu à sua máquina de escrever.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Untitled

Talvez seja surpresa pra uns, mas eu faço parte de uma irmandade. Era freqüente, em meus anos de mocidade. Não costumo falar sobre isso, até evito, mas estou citando isso porque é algo essencial para o que vou dizer a seguir.
Era uma e meia e eu saí de casa, para encontrar Fernando e, assim, irmos de encontro a um rapaz que estava sendo indicado por um tio nosso. Fê tinha o endereço e os telefones, mas sequer sabíamos o bairro onde o garoto morava. Era neto da antiga caseira do condomínio onde costumávamos atuar.
Cheguei as duas e quarenta no Flamengo, em frente ao prédio do Fê, e liguei duas vezes para ele, mas ninguém atendeu, logo decidi subir, pois esperar nem me parecia uma boa opção. Subi e fui recebido por alguém que não fazia idéia de quem era, enfim, ele estava no banho e eu deveria esperar e assim o fiz. Cochilei, no meio tempo, até que ele saiu do banho, descobrimos o bairro e nos pusemos a ir. A Vargem era grande e a viagem longa.
Pegamos um três oito dois na Praia de Botafogo, e passeamos pela orla. Copacabana, pela Atlântica, é tão linda. Vieira Souto, em Ipanema, nossa. O Sheraton passou por nós, quando passávamos pela Niemeyer. Ao passar pela Ponte da Joatinga, finalmente me dei conta de inúmeras memórias que já se perdiam após anos e anos. Época em que morava no Flamengo e cruzava essa ponte – que sempre me impressionou – quando ia com meus pais dar uma volta, desde que nasci até meus onze anos. Eu fiquei atordoado, no momento, pois de tanto, de tudo, me lembrei. De toda a arquitetura da ponte, dos túneis, o cheiro da maresia naquela ponte, do mar, das ilhas que fugiam para o horizonte. Saudosismo, por que me abraças?
De todo modo, seguimos sempre em frente, passando pela Ministro Ivan Lins, enfrentando um pouco do trânsito parado. Não desgosto de ficar na estrada, ou nas ruas, dentro de uma condução, esperando o destino chegar. Pra ser sincero, adoro, mas se há alguma coisa que eu detesto é engarrafamento. Não suporto e explodiria todos os carros, se pudesse, ou dirigiria um desses Monster Trucks, para passar por cima de cada um dos carros que quisesse desafiar a força incessante do ímpeto natural de seguir em frente.
Passado o engarrafamento, continuamos. Já havia se passado uma hora de viagem e ainda estávamos no Recreio. Fê havia ligado para a Tia e ela nos deu uma referência, para que pudéssemos usar na hora certa de saltar do ônibus. A trocadora desconhecia a referência e ficou por isso mesmo. Decidimos esperar. Ao passar por Vargem Pequena, pedimos ajuda a outra senhora que nos apontou com precisão o ponto no qual deveríamos descer e onde a rua estaria ao descermos. Descemos e resolvemos dar uma mijada no mato. Apontei meu pênis para Fê e ameacei mijar nele, mas minha razão falou mais alto e eu mirei numa árvore. Enfim fomos rumo a tal rua.
Um dado curioso sobre a rua é que o número das casas que nela se encontravam se embaralhava. Não havia um lado específico para casas de número ímpar ou par. E tava tudo tão estranho, havia uma neblina. Fê e eu brincamos que estávamos em Silent Hill e aquela rua não fazia sentido, até porque, no fundo, não fazia. Ela desembocava numa pracinha onde não havia essa casa. E aí? Bem, pedimos arrego e fomos a um bar perguntar aos donos do estabelecimento sobre a tal casa. Eles nos disseram que não havia tal casa lá - o que reforçava a idéia de Fê que estávamos em Silent Hill -, mas que havia outras ruas homônimas pela região, uma mais ao fim da estrada, outra lá atrás, no Recreio, no Terreirão, mais especificamente. Xinguei Deus, o mundo e o Fê e me mandei de lá com ele. Pegamos um setecentos e três e paramos após passarmos o Recreio Shopping e lá pedimos informação a um feirante que ficava por lá. Ele ficou passando um papo estranho, dizendo saber onde fica a tal rua, que mora lá perto, ia levar a gente lá, enfim, tudo bem. O cara parecia ser prestativo. O papo só ficou estranho quando ele disse que não tinha certeza se aquela era a rua, pois vivia lá de aluguel e não sabia o nome da rua onde morava. AÍ eu me preocupei.
Quando comecei a escrever meu romance, citei Kerouac ao dizer que num país de terceiro mundo como o Brasil, onde o desigual mora ao lado, viajávamos ao México todo dia da semana. Pois bem, sempre vi a pobreza de longe, seja em livros, em televisões, em obras sociais relativamente próximas aos locais, ou no trajeto de volta para casa, mas nunca estive tão perto, nunca pisei num chão revestido pelas lágrimas e pelo suor do trabalho. E ao lado, um Shopping Center bem estruturado, a menos de cinco quilômetros. Me fez pensar, isso.
Voltando, depois de nos perdermos do cara e nos perdermos no bairro, procuramos a tal rua até que achamos a rua e a casa. A casa da Tia era uma casa bem bacana e destoava das demais do bairro. Era bem tratada e aconchegante e eu me senti melhor ao saber que ela e sua família moravam bem, lá. Conversamos por muito tempo sobre pessoas. Sobre as pessoas que passaram pela irmandade. Pelos fatos, pelas idéias que por ali passaram, também. Foi gostoso, foi um tipo de saudosismo próximo, pois eram saudades de pessoas com quem convivo. Enfim, logo mais fizemos o que deveria ser feito, agradecemos a hospitalidade e demos o fora. Pegamos um ônibus que passava pela orla e voltamos pro Flamengo. No meio do trajeto, em algum lugar do Recreio, tive uma visão. Na visão, Dylan me dizia para eu não me preocupar, apenas ser feliz e por cinco longos minutos eu o ouvi assobiar, até que adormeci. Adormeci pensando no dia em que voltaria para o meu Flamengo – bairro, claro, pois não renuncio o meu tricolor de forma alguma -, para, novamente, sentar à orla e fumar enquanto as estrelas me observariam. Ao chegarmos ao Parque Guinle, avistei um quatro três quatro de longe e rapidamente me despedi do Fê, para poder alcançá-lo. Dei um sprint até chegar ao Princesa, na Senador Vergueiro, pois o puto do motorista não parava pra mim. Eram nove e tanta da noite, mas não tinha me cansado até aquela hora. Talvez isso devesse significar que eu deveria fumar menos. De todo modo, sentado num banco do quatro três quatro, já poderia me considerar em casa. Na verdade já estava em casa e a noite já estava terminando. E terminava a breve noite de terça-feira, junto ao longo dia que a precedeu.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Ode a Bob

Numa tarde de sol, Dmitri esperava Goldenberg, sob o sol de uma da tarde, em pleno horário de verão.
- Oi. – respondeu ele ao telefone.
- Já te disse o quanto eu te odeio, hoje?
- Calma, eu já estou chegando.
- Eu não disse porque não te odeio mais, agora quero te matar.
- Ei, relaxe, relaxe. Já estou te vendo.
E Goldenberg descia a rampa que o levaria de encontro a Dmitri e ao estádio.
- Não foi tão mal, foi? – perguntava o judeu.
- Tirando o fato de que eu estava sob esse sol de quarenta bons graus e você se atrasou deste jeito, no ar condicionado do metrô, bem...
- Mas eu demorei assim porque eu quase fui assaltado saindo do metrô!
- E eu, vestindo esse tênis de boiola que, além de tudo, é minúsculo? - Dmitri vestia um all star de couro branco, imundo, que um amigo trocara com ele por um par de havaianas. – E o cara que trocou comigo veste trinta e nove! Trinta e nove!
- É, pequeno, o cara. Vem cá, por que aqueles dingos estão olhando pra cá?
- Ah, enquanto você demorava, fiquei sem nada pra fazer, então eu comecei a imaginar a vida daqueles mendigos. Veja você, está vendo aquele que ainda tem alguns dentes? Ele é o João. João passou a vida inteira correndo atrás do mundo por sua mulher, até o dia em que percebeu que ela não valia a pena e a abandonou. O outro, aquele sem a mão esquerda, é o Bob. Oi, Bob! – Gritou Dmitri, enquanto ambos responderam – Bob é gente fina, cara.
- Imagino que seja, sim, mas vamos para a fila? Temos que comprar meu ingresso.
- Depois de atrasar meia hora, você vem me cobrar assiduidade?
Goldenberg não respondeu e ambos seguiram para o final da fila.
- Sabe, eu acho que vai demorar.
- Ah, vai me culpar pelo atraso, de novo?
- Bob é gente fina demais. Perdeu a mão nesse conflito na Faixa de Gaza. Era um homem sem ideais, mas está aleijado por causa de um. Estranho, né?
- Mas o Exército Brasileiro participa do conflito?
- Bob participa. Viva o Bob! –Gritava ele, novamente. Enquanto muitos dos presentes na fila urravam por Bob, outros mandavam Dmitri calar a boca. – Todos acham Bob gente fina.
- Todo Bob é gente fina.
A fila andava, repórteres filmavam. A ascensão do tricolor era motivo de espanto. A tal repórter de quadris belos e fartos e siliconados peitos tentou entrevistar Dmitri, mas ele disse que não dava entrevistas. Ele se achava um babaca. Pois ela também.
Dmitri se despediu de Goldenberg, esse com os ingressos em mãos, e voltou pra casa.

O telefone tocou. Era Sasha, um velho amigo.
- Oi, ligou lá pra tia? – perguntou Sasha.
- Não, eu to ficando sem dinheiro pra essas ligações.
- Mas liga pra inglesinha, lá.
- Alto lá, nunca liguei pra Louise! Ela sempre me ligou, coitada. Ligou tanto pra descobrir que foi coisa de momento, uma aventura de verão.
- Você é um babaca. Fez a pobre criança sofrer.
- A culpa não é minha. Quando a vi na praia, pensei que era mais uma garota do sul nas praias cariocas, mas ao falar com ela, percebi que a vaca loira era gringa, na verdade.
- Sempre pelo caminho mais difícil, né?
- No fácil, elas não são rosa. – disse Dmitri, rindo.
- Você é um babaca.
- Tá, e você vai ligar pra tia? Eu realmente não to com grana pra isso.
- Um dia você vai ver que não tem ninguém mais pra te ajudar. Você suga Deus e o mundo, só pra evitar um esforcinho a mais.
- Entenda bem, você sabe que eu posso ligar, eu sei que eu posso ligar, mas sou um cara tímido.
- O caralho! Você é um mão-de-vaca!
- Como quiser, eu não quero falar com ela. Nem a conheço!
- E você ainda engana algumas pessoas de bem que pensam que você vale algo.
- Isso se chama inteligência. – “Isso se chama sorte!”, retrucou Sasha – Ou isso.
Sasha desligou o telefone.
Dmitri pensava no dia que tinha se passado e já não sabia mais se havia como torná-lo bom. Não, não havia – concluiu. Sabia que Bob saberia viver uma vida melhor que a sua. Então serviu uma generosa dose de uísque e colocou dois cubos de gelo em seu copo e pôs- se a tentar voltar a escrever seu livro.